O dia havia amanhecido enquanto Jack caminhava pelas ruas de Vicari até o esconderijo da Irmandade. Sua cabeça zunia com todas as descobertas e acontecimentos da noite anterior. Lugos pertencia aos Coletores e enquanto todos achavam que ele estava raptado ou até mesmo morto, o seu desaparecimento foi proposital para se preparar para o fatídico dia em que poderia assassinar o prefeito, e foi o que aconteceu. Cornélius estava morto, e em consequência disso, as forças rebeldes tomaram a cidade para si. Mas o que mais pesava para Jack foi o seu ato de cortar a garganta de Flint e o último olhar de desaprovação que recebeu de Delilah. Foi uma longa caminhada até a casa no bairro pobre que servia como sede da Irmandade. Não foi surpresa para o gatuno ao encontrar Vivaldi e Jeromé acordados e sentados envolta da mesa no andar subterrâneo. As notícias corriam rápidas em Vicari e os dois sabiam que o prefeito morreu e que a Casa da Prefeitura havia sido tomada pelos rebeldes. Jack teria tempo para contar todos os detalhes futuramente, mas no momento, o que ele mais queria falar, era sobre Lugos e sua possível traição aos princípios da Irmandade. - De certa forma, ele mentiu para nós - disse Vivaldi. - Com certeza ele sabia que estávamos à sua procura pela cidade, inclusive por locais em que corríamos um grande risco de sermos pegos. - Jeromé apenas balançava a cabeça, concordando. - Harpia, Urso... podemos discutir isso mais tarde. Mesmo por que existe a opinião de mais uma pessoa que precisará ser levada em conta. Harpia, o Dr. Handrámon está do outro lado dessa porta e creio que os dois precisam se acertar. Jack se levantou da mesa e foi em direção à porta. Abriu-a devagar, pois sabia que era ali em que acontecia o tratamento de Amanda. Havia uma única fonte de luz minguante, que deixava o ambiente meio-escurecido. O gatuno avançou sorrateiramente pelo lugar. Notou uma cadeira do lado da cama da paciente, e Handrámon estava sentado na cadeira, aparentemente dormindo depois de uma longa noite de trabalho. Ele percebia o esforço do cirurgião por todas as ferramentas espalhadas pelas mesas e bandejas. Um movimento repentino vindo da cama hospitalar o assustou. Amanda havia virado a cabeça em sua direção, e ela o olhava. Ainda estava com vários fios conectados em seu corpo, e o seu olhar não podia ser definido como o de uma pessoa normal, mas a Amanda nunca fora alguém tido como normal. Ela, então, surpreendentemente começou a estender a mão em direção à Jack, mas só conseguiu até onde os fios deixavam. Seus lábios começaram a se mexer, e com dificuldades, sussurrou três palavras. - Eu o odeio. Era o seu modo de ser carinhosa e isso só podia significar uma coisa: após longos dois meses, ela finalmente demonstrava claros sinais de melhora. Amanda voltaria a ser uma parte integrante da Irmandade.
O dirigível pousou apenas uma vez, fora dos limites de Vicari, e foi para deixar que Lugos desembarcasse e seguisse o seu caminho. O assassino do prefeito não fez a menor questão de se despedir dos outros, com a exceção do Sr. Scoresby, mas foi também uma despedida singela e profissional. Em seguida o Sr. Scoresby disse à Anna que a levaria para casa. Não pode-se dizer que a viagem de volta foi agitada se comparada à anterior, aonde o dirigível foi abatido por uma tribo selvagem de homens-javalis e eles tiveram que dormir uma noite no meio da floresta. Pelo contrário, a viagem transcorreu sem maiores incidentes, exceção feita ao momento de maior tensão por parte do Sr. Scoresby, que foi quando o dirigível sobrevoava novamente a enorme área que fora desmatada para a construção da trilha ferroviária. - Cada vez que olho para esse lugar, pior me sinto - comentou Ratchford. No caminho da área desmatada, havia uma montanha. O Sr. Scoresby pareceu ter avistado algo lá, pois correu para pegar a sua luneta e ver com mais precisão. Com o semblante preocupado, o mekânico tirou a luneta e disse: - Tem pessoas ali... trabalhando. Parecem que estão construindo um túnel. Isso não tá me cheirando bem. - Ele voltou a observar pela lente da luneta. - Talvez a informação do que aconteceu em Vicari ainda não tenha chego até eles... bom, de qualquer forma, não iremos desviar o nosso rumo. Irei cuidar disso depois. O voo prosseguiu ininterruptamente. Lizzie a cada dia se apegava mais a Anna, dormindo sempre em seu quarto e de preferência na mesma cama que a sua. Ratchford, de alguma modo, parecia mais leve do que antes. Ele tratava Anna diferente. Não pior, nem melhor... apenas diferente. Era um modo de agir mais natural e íntimo, deixando de lado um pouco às amarras profissionais que antigamente ele se via atado. Um dia e meio de viagem depois, eles se juntaram à borda do dirigível para observar a aproximação de Ellsporth. Uma sensação de alívio tomou conta de todos. Era como se eles tivessem saído de um grande pesadelo para acordar na segurança de sua casa. Mas, nesse caso, não foi bem o que aconteceu. Ao aproximaram da casa de Anna, ela já sentia o lugar diferente. Parecia tudo muito quieto, até eles pousarem o dirigível na propriedade da mansão. Houve uma certa demora até alguém vir recebê-los. E a primeira que surgiu, até de forma inesperada, foi Gutierra, a filha da madrasta de Anna. Mesmo com toda a sua timidez, seria natural ela recebê-los com um sorriso no rosto, mas, ao invés disso, ela chorava silenciosamente e com os olhos virados para o chão. Quando Anna se aproximou, ela quase não teve forças para anunciar em voz baixa. - O Sr. Belgarten... o seu pai... ele está... morto. Sinto muito.
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