Um grupo de rebeldes se destacou para subir a escadaria da mansão e pegar o corpo do prefeito. Jack observou-os checando os batimentos cardíacos que já não existiam mais, e depois tomando o corpo em seus braços fortes para descê-lo de volta pelos degraus. Jack os acompanhou na descida. O grandalhão, suposto líder dos rebeldes, deixou de lado por um momento a pergunta que havia feito para Flint e se agachou ao lado do corpo de Cornélius, examinando-o. Havia uma expectativa no ar quando o homem tornou a se levantar, para dizer: - Não há mais nenhuma dúvida. Este é o corpo do prefeito e ele está morto! - anunciou, para a celebração geral dos rebeldes, que gritaram e batucaram nos móveis que haviam por perto. Aos poucos as atenções foram se voltando a Jack, que agora estava no térreo, entre Flint e o grandalhão, e começara a discursar. Aproveitando o gancho da pergunta que fora feita a Flint, o gatuno contou uma história verídica sob muitos aspectos, mas com pequenas nuances que fazia parecer que ele havia sido o responsável pelo assassinato do prefeito. Jack viu o olhar de Flint demonstrando um medo crescente a cada nova frase que ele falava, e quando mostrou o echarpe bordô e a palma da mão com o símbolo, o ex-assessor olhou para baixo, como se finalmente houvesse caído a sua ficha. Quando Jack terminou o pequeno discurso, houve um burburinho geral entre os rebeldes, a maioria de aprovação, Jack percebeu. Flint não conseguiu responder a pergunta do gatuno, primeiro porque o próprio gatuno não deixou que ele o fizesse. Voltando-se novamente ao grandalhão, pediu para deixar que o ex-assessor do prefeito fosse embora e que desse um fim às hostilidades no terreno da prefeitura. - Ele ainda terá um papel a desempenhar - disse o grandalhão, visivelmente menos desconfiado de Jack do que anteriormente. - Não posso deixá-lo ir. Sobre o fogo, cuidaremos dele. Essa é uma bela casa, afinal, e não precisa virar cinzas e pó. Iremos fazer uso dela - garantiu. O homem então retirou a luva da mão direita, revelando dedos grossos e calejados, e os estendeu à Jack para cumprimentá-lo. - Eu me chamo Herbert, embora você já deva me conhecer, se o que diz é verdade. Você não explicou tudo o que aconteceu aqui, mas vou lhe dar esse voto de confiança. Já você... Herbert se aproximou de Flint e flexionou seus joelhos, para que seu rosto ficasse na mesma altura que a de Flint, que desviou o olhar. - Você irá nos ajudar a ter o controle dessa cidade, não vai? - perguntou, em tom ameaçador. Flint não respondeu de imediato, o que fez o grandalhão elevar o tom de voz. - Responda quando lhe dirijo a palavra. Tremendo, Flint assentiu com a cabeça. Herbert não ficou totalmente satisfeito com a resposta silenciosa, mas voltou a ficar ereto e a caminhar a frente da multidão rebelde. Era a sua vez de discursar. - Homens, por muitos anos o poder governamental de Vicari nos submeteu à leis desvantajosas que nos obrigavam a trabalhar em péssimas condições e por mais de doze horas por dia, para que eles se enriquecessem às nossas custas, ao nosso suor e ao nosso esforço! - Os rebeldes soltaram gritos de concordância. - Havíamos virado reféns do sistema, obrigados a aceitar que nos era imposto para que colocássemos comida nos pratos de nossos filhos. Mas isso acabou, e por isso essa noite é histórica. Vicari agora nos pertence! Nós faremos as leis! - Mais gritos entusiasmados. - Alguns de vocês podem estar se perguntando como faremos isso, mas é só olhar a nossa volta para saber que nós temos a faca e o queijo na mão! Os homens comemoravam. Era uma classe que sofrera muito, e isso era visível em seus rostos. Alguns chegavam a ter lágrimas escorrendo pela face. - Agora, mais do que nunca, precisaremos de um novo prefeito para a cidade - disse Herbert, antes de se dirigir novamente a Flint - e é aqui que você entra na jogada. Os papéis irão se inverter, e agora você é que será o nosso braço forte. Você irá sair daqui vivo, como um herói. Criaremos uma história para que assim seja. E você deverá disputar as próximas eleições para prefeito, e se a nossa história tiver sido convincente, tenho certeza que você ganhará a eleição, se tornando assim o novo prefeito de Vicari. Em outras palavras, você trabalhará para nós, que estaremos por trás de sua figura coordenando todos os passos. Quanto a você, assassino do prefeito, não sei o que posso fazer para recompensá-lo por tal ato de bravura. Talvez uma posição dentro do conselho da cidade? - sugeriu Herbert, soando como uma proposta.
- Liz... Lizzie. Esse era o nome da filha do prefeito, e foi o que ela disse para Anna. Era uma menina adorável e bonita. Não tinha nenhuma semelhança com o prefeito assassinado, levando Anna a pensar que ela puxara a mãe, seja quem ela fosse. Com a saída de cena de Lugos, Annalise reuniu a coragem necessária para questionar o Sr. Scoresby. - Por favor, Anna, se acalme, eu irei explicar tudo - pedia o homem. Com a negativa dela ir sem a menina, ele disse: - Eu receio que ela ainda não sabe ou não entende o que aconteceu com o seu pai... mas bem, uma hora ela terá que saber, não é mesmo? Então que seja agora. O Sr. Scoresby desistiu da ideia de ir até a cabine. O motivo disso era apenas para poder falar abertamente com a Anna sem precisar se preocupar a com a pequena garota. O Sr. Scoresby tirou o chapéu de sua cabeça e limpou o suor que escorria vinha de seu couro cabeludo grisalho para a testa. - É difícil dizer isso para uma criança, mas... o seu pai está morto. Lizzie arregalou os olhos a princípio, talvez sem acreditar ou achando que era alguma brincadeira, mas então ela se virou para Anna, e o rosto de Anna dizia que aquilo era verdade. Com os olhos marejados, Lizzie se agarrou em Annalise mais forte do que quando elas estavam subindo a corda às alturas. O Sr. Scoresby deu um tempo para que a menina chorasse e colocasse pra fora a sua dor, e só então voltou a falar com Anna. - Tem certeza que quer prosseguir a conversa com a menina junto? - perguntou. Caso Anna optasse por sim, o Sr. Scoresby continuaria o seu relato ali mesmo. Se ela optasse por não, os dois seguiriam até a sua cabine e deixariam Lizzie ao lado de Ratch (desacordado) e Sucata. - Anna, eu quero deixar claro, em primeiro lugar, que eu não sabia que as coisas chegariam a esse ponto que chegou. Era para tudo ser rápido e limpo, sem qualquer perigo para você ou para os outros convidados. Bom... para você entender melhor a situação, acho que terei que contar desde o inicio. O Sr. Scoresby respirou fundo antes de retomar a fala. - Eu e o seu pai, sim, o seu querido pai, acredite se quiser, trabalhamos para uma organização secreta chamada de Os Coletores. O nosso papel no mundo é proteger o meio-ambiente, e por isso atuamos em várias cidades. Por muitos anos a organização combatia o emprego da tecnologia e o crescimento das cidades urbanas, sendo elas as grandes responsáveis pela destruição da fauna e flora de nosso planeta. Ainda fazemos isso, mas nos dias atuais usamos métodos mais eficazes. Descobrimos que é muito mais fácil colocar alguém favorável a nossa causa no poder do que simplesmente tentar frear os avanços inerentes ao crescimento da sociedade. Por isso o seu pai e meu amigo, Gregory, está no poder de Ellsporth. Ele está lá para garantir que não haverá excesso por parte dos homens obcecados por dinheiro. Se duvida do que falo, você com certeza já deve ter reparado em como o seu pai sempre se preocupou com questões como a poluição ocasionada pelas fábricas e o desmatamento das árvores. O dirigível, Anna percebera, já havia a muito se distanciado das propriedades da Casa da Prefeitura. Ela não sabia para onde eles estavam indo, mas talvez não importasse tanto quanto ouvir o resto da história do amigo do seu pai. - Nos mantemos em segredo por uma simples questão de segurança - disse. - Veja, há muitos homens poderosos que fariam de tudo para destruir aqueles que se opõem em seu caminho ganancioso. E nós nos opusemos no caminho de Cornélius. Temos um espião no centro de poder de Vicari, e ele nos relatou que o prefeito construiria uma trilha de trem interligando Vicari à Ellsporth. O problema é que para que isso acontecesse, eles fariam a trilha no meio da floresta que fica entre uma cidade e outra. O desmatamento que vimos quando chegávamos aqui era resultado disso, embora ainda houvesse uma esperança de que, com a nossa ameaça ao prefeito, ele desistisse da ideia. Infelizmente, como vimos em seu anúncio na festa, ele não havia desistido de seu plano, e por isso Lugos o matou. Era o nosso último recurso matá-lo, mas assim tivemos que fazer. Lamento pelo que veio depois disso. Havíamos comprado a lealdade dos trolloides que faziam a segurança do prefeito, mas apenas o usaríamos em caso de extrema necessidade. E era necessário que eles agissem, mas criaturas burras como são, eles acabaram provocando um tiroteio com os demais guardas que colocou a vida de muita gente em risco. Inclusive a sua, e por isso peço desculpas - o Sr. Scoresby parecia sincero em seu pedido, visto o semblante carregado em pesar que demonstrava. - Gregory jamais me perdoaria se tivesse acontecido algo a você, por isso voltei para salvá-la dos rebeldes. Ah, falando nos rebeldes, eles foram outro fator que fugiu de nosso controle, pois não sabíamos que eles iriam tão longe em suas manifestações. O Sr. Scoresby olhou para trás, em direção a uma coluna preta de fumaça no céu, possível de ver mesmo naquela distância em que se encontravam. - O futuro de Vicari é incerto - disse. - Com a morte do prefeito, esperamos que suba no cargo alguém que simpatize por nossos ideais, talvez o próprio espião que temos, isso se os rebeldes não o tiverem matado. De qualquer forma, Anna, quero que entenda que as nossas intenções são as melhores que existem. Eu contei tudo isso para você por que uma hora ou outra você ficaria sabendo. É desejo do seu próprio pai se junte a nossa causa, e por isso ele quis que você viesse para cá e presenciasse os eventos dessa noite. Mas, é claro, a escolha é sua. |