O dia se arrastava em Shantagnahr. Chegaram cerca de quarenta pessoas pelo porto em duas embarcações. Uma delas carregada de fumo, ervas e grãos em geral, a outra com destilados, fermento e hortelã. Chegara ainda por volta de vinte estrangeiros em três caravanas e uma trupe dos ciganos Ruh.
Charles Darren
Charles estava mais perdido do que quando chegara. Nalgum momento o dinheiro ia acabar e, se não fosse o dinheiro seria ele. Não suportava ficar parado num lugar sem nada para fazer. O sol ainda não estava a pino, era por volta do oitavo sino. Ouviu quando se vestia o som que o badalo fazia. Pouco observava na rua. Um homem vomitava na entrada de uma casa à sua esquerda. Uma mulher batia com um cabo de vassoura noutro mais a frente. Nada fora do comum. Sua confusão era tamanha que saiu de sua própria estalagem, a qual já havia pago pelo desjejum farto que estava incluído em seu pacote e fora caminhando perdido em pensamentos até uma taverna há cinquenta braças de sua estalagem. Entrara como por instinto e pedira leite. Sua introspecção não permitia conhecer qualquer que fosse a reação à sua volta. Ainda pensativo fala com Valter, o balconista. Ele limpava as canecas com um pano surrado e um pouco sujo. Nada que Charles já não vira noutros lugares. Não se intimida e bebe o leite quente que o homem lhe serve. Depois pergunta-o sobre trabalho. O homem se senta num banco alto atrás do balcão.
- Se quer um trabalho em que tenha que bater em pessoas, pode procurar o velho Bill, no porto. Ele deve ter alguma coisa lá para um cara forte como você. Carregar umas mercadorias e tal. Soube que chegaram uns mercadores aí, o Bill deve contratar. Mas se quer algo em que use a sua espada o Xerife é quem sabe.
O hálito do homem era puro chorume. Havia um ar de álcool bem ao fundo, mas, de novo, não era nada que Charles não tivesse experienciado em sua vida. Nem todos tinham dinheiro para hortelã...
Noris Cordun
Noris acordara ao lado de Divina e muitas dúvidas rodeavam aquele quarto. Como chegara ali? Ele escolhera aquela moça? Que cicatriz era aquela? Que lugar era aquele? A verdade é que o mestre das correntes estava lúcido pela primeira vez em muito tempo. Sua mente estava confusa, mas afiada. Consegue fazer várias suposições enquanto se aproxima da moça. Sua última memória de ontem era a negativa delicada de Lucy. Ela havia dito que precisava falar com um cliente, mas ele a vira entrar numa sala com Claudius um careca nojento que Noris achava que era uma espécie de cafetão dela, ou amante, ou qualquer coisa assim. Assim ele começara a beber muito e não recorda mais. Não sabe como escolhera Divina, apesar de saber o porquê. A melhor resposta que tinha para a cicatriz era que havia sido ferido num sonho, como se isso fosse plausível. Por último, sabe que aquele não era o quarto 13 do Tapa N'aquilo lá, não era o seu quarto pessoal no Canto da Sereia e a verdade é que estava perdido. Levado pelo costume ele começa a tocar a moça, mas sua libido não atingira o êxtase conhecido. Enquanto passava a mão pelo corpo da moça, esta se afasta e ele não compreende, sua reação e a dela. A moça deixa o lençol cair e vai até a mesa pegar um vestido que ela coloca devagar, bem devagar.
- Nós viemos para cá porque você foi expulso do tapa, não lembra? Eu sei que sou gostosa, por isso mesmo eu cobro por hora. Se você pagar eu derrubo esse vestido de novo e nem ligo para o que quer que seja isso aí. - Diz apontando para a cicatriz. Uma das alças do vestido caídas até o antebraço e outra pendurada entre dois dedos da mão esquerda. - Mas sem grana, sem sexo!
Artemisia Gentilieschi
Preocupada com a rabugisse do velho, a moça nem lhe dá tempo de nada falar. Vai à rua fazer compras necessárias à casa. Queria fazer alguma comida diferente e não tinha ingredientes em casa. O melhor que podia fazer era uma sopa de coelho, mas com os ingredientes certos poderia fazer um guisado do leporídeo com batatas. Leporídeo pensa consigo mesma. Nunca aprenderia tal nomenclatura na casa de seu pai. A jovem arcana segue até os subúrbios onde havia uma feirinha e parecia que a feira estava para ser abastecida. Uma menininha de nove anos fala para ela que seria melhor voltar em duas ou três horas quando os homens já teriam carregado os condimentos para a feira e ela poderia comprar o que quisesse mais barato do que agora. Rutinha já era conhecida de Artemisia, era uma garotinha esperta que ajudava os pais na vendinha. Era a mais velha de seis irmãos e, por isso, tinha um ar muito maduro, mas no fundo era apenas uma criança. Artemisia sempre contava histórias de longe de Shantagnahr para a mocinha e brincava de várias coisas como o jogo da pedra.
O sino toca oito vezes, a celebração das sete havia acabado e a moça sabia que era a melhor hora para falar com o padre Francisco. Então a moça segue o caminho para a igreja. Olha em seu caminho as coisas do dia a dia de Shantagnahr. Havia uma mulher dando com o cabo de uma vassoura no lombo de um homem. Ela pode ouvir: "- Com aquela vagabunda denovo? Perdeu dinheiro no beco...." A jovem se lembra de uma vez em que vira cena semelhante em sua terra natal. A verdade é que tinha saudades de lá. Cruza com pessoas na rua, uma mulher e suas crianças, um guerreiro de armadura, um homem vomitando à direita... Coisas de qualquer lugar.
Ao chegar na igreja, Artemisia faz o sinal ritual da roda, começando na testa depois o ombro esquerdo, aí abaixo do peito, ombro direito e testa novamente. O sinal que lembrava a roda em que Tehlu fora queimado com o demônio Encanis. A igreja era de longe a maior construção da vila. Não chegava a impressionar como a catedral em Imre ou outras que a moça já vira, mas era maior e mais suntuosa que outras que já havia visto e de longe nesta cidade. Vira o padre na Nave falando com um casal. Entrou pela esquerda e saiu num corredor de uns quatro metros de lado que seguia por uns vinte metros, mas entrara numa por uma passagem a direita que dava para a Nave. Depois parou e esperou que o Padre terminasse a conversa. Às suas costas passou um homem com vestes sacerdotais e sentira que ele o observava. Por fim o homem saiu e ela o olhara quando saíra. Havia uma sensação que não conseguia descrever, mas sentia que aquele homem era conhecido.
O casal falava com o Padre sobre um casamento, conseguiu escutar a moça. Quando concluíram o padre abre os braços e diz sorridente: "- Minha florzinha! Como estais vós? Que Tehlu sempre lhe proteja! O que lhe trás aqui?"- O padre se aproxima com os braços abertos e a abraça. Depois faz o sinal circular em sua testa, dando-lhe a benção e então concluí segurando-a pelos ombros. A moça já o conhecia da igreja em sua cidade. O padre a vira bem pequenininha. Era já um senhor de quase cinquenta anos e tinha muito afeto por ela. Os dois já haviam se encontrado antes em Shantagnahr.
Adso de Melk
Depois de escrever o sonho rico em detalhes, o padre começa a meditá-lo. Percebe que alguns fatos ocorridos são mais que o próprios fatos. São sinais de coisas que já aconteceram, estão acontecendo ou podem acontecer. Ele interpreta os sibilos e toda a tentativa de hecatombe como uma volta ao passado, à sua história. Tomara para si a presença de outras pessoas e as palavras do Cavaleiro da armadura azul como um sinal de pessoas que precisavam ser guiadas, mas para onde? A verdade é que nessas horas o padre desejava ter se esforçado mais nas aulas de hermenêutica. Depois de duas horas de meditação ele percebe que só a sua sabedoria seria infrutífera. Precisava de algo mais e foi até o salão de perscrutação. Lugar onde os sacerdotes, seminaristas e fiéis mais instruídos faziam momentos de contemplação e leituras diárias das escrituras. Onde os escritos sagrados de Tehlu o levavam a entender um pouco mais sobre várias situações cotidianas. O sino toca as oito badaladas. Já era tarde para fazer a oração da manhã, mas o sacerdote havia recebido uma visão. Tudo, até mesmo as laudes, poderiam esperar.
Na sala da perscrutação, Adso teve vinte e cinco minutos a sós com a palavra e pode consultar as cento e cinquenta e oito páginas que escrevera sobre o sonho. Consultara os escritos de Anathot, o visionário, e viu quantas coisas Tehlu lhe falava em sonhos arrebatados mesmo durante o dia. O santo homem recebera a visita de um Arconte. Vira coisas tenebrosas que se cumpriram na vida do povo em Ilian. Diante disso se abateu, e achava que sua experiência podia ter sido apenas um sonho juvenil. Guardara seus escritos quando chegaram as primeiras pessoas. Adso precisava combater muito consigo mesmo quando outras pessoas adentravam a sala. Muitas pessoas não conseguiam ler sem falar, mesmo que baixo e o padre era mais uma delas. Ele então sai para fazer a oração da manhã, jé bem tarde.
No corredor passa próximo a Nave no caminho para a capela. Há uma moça à porta. Ela lhe lembra a moça em seu sonho e o padre para por uns dois minutos a observá-la e, quando percebe que estava sendo incômodo, segue seu caminho.
Faz a oração tão rápido e desleixado, porque não conseguia parar de pensar que havia encontrado uma pessoa de seu sonho. Isso renovava seu ânimo, mas o deixava desajuizado. Certamente que haveria buchicho se alguém o visse ter a conversa que pretendia ter com a moça. Ele sai da capela e se dirige à Nave, mas ouve:
- A esta hora, irmão de Melk? Já passou da hora das laudes, não? Se sente bem? - Adson reconhece apenas pela voz. Era dona gertudes, uma carola da igreja, acompanhada de dona Carmosina.
Nahir
Nahir escolhera o caminho mais fácil. Melhor seria se o sonho fosse apenas um sonho ridículo, afinal estava vivo ali. Se o sonho fosse real estaria morto. As cicatrizes se podem explicar com uma incrível ação de ácaros que habitavam a cama onde estava hospedado. Havia um pequeno quarto fora da casa que servia aos empregados. Dentro do quarto havia um fogão rústico de pedra, já com alguma lenha, uma cama grande onde caberiam até três pessoas, um armário para roupas e uma mesa com duas cadeiras. Nos fundos da casa havia um grande terreno onde o patrão permitira ao casal de criados fazerem uma casa segundo o próprio coração. Estava bem de vida o homem.
O rapaz se veste e vai até a casa de Mardoquesin, seu anfitrião. Senta-se a mesa, saúda a todos e joana lhe serve o desjejum. Dona Efigênia fica a olhar para ele, as crianças já haviam tomado os desjejum e já passara das oito badaladas há algum tempo.
- O que é isso, meu filho? - Diz a mulher apontando o pescoço do rapaz. Ele trazia marcas por todo o corpo e para escondê-las precisaria de um capuz ou algo do tipo. Veste que não combinava em nada com o tempo em Shantagnahr.