Estranho como memórias são coisas frágeis, não é? A linha do tempo mergulha nas sombras nessa parte para sair da escuridão no desesperadamente exuberante jardim. Plantas ali que nunca tinha visto antes, estátuas harmoniosamente postas entre elas e até um jazigo particular. Será que isso é permitido por lei? Quem se importa? Uma sombra depois já estava entrando pelo janelão aberto. Maior do que a porta da sua casa. Tinha dois parceiros com você, uma gata tatuada e um magrelo com dedos grandes demais. Eles passaram a noite toda cometendo erros e deixando a operação vulnerável. Não que se lembre dos erros. Mas tinham cometido.
Agora cometiam mais um. O cara enfiando as digitais em um vaso grande demais para levar embora. A garota literalmente cuspiu vinho, mais caro que ela, em um quadro. Como foi que esses idiotas acabaram com você? Escuridão de novo. O dono da casa rindo no alto da escada com uma garrafa na mão. Dor. Dor alucinante. Um segurança com um canivete enfiado no pescoço, não era para ter ninguém ali. Ele escorria pela parede segurando o pescoço de forma hipnótica, era o segurança mais baixo que tinha visto. Alguém estava gritando. O magrelo pulando a janela. A garota tatuada gritando. Ela no chão com uma perna dilacerada. Silêncio, garganta arrancada. Risada embriagada.
Uma sensação maravilhosa. O segundo andar imediatamente abaixo dos seus pés. O impacto sobe das garras até o ombro como deveria ser. Um arco de sangue brilha como rubis líquidos no ar da noite. Joias de valor inestimável. Um movimento, uma ação, uma consequência. Revelação espiritual. Passos se afastando. A escuridão é uma amante doce. As pernas magras correndo desesperadas, o casaco fica para trás e ele olha. Ele vê e então o gosto de sangue enche a sua boca. A melhor coisa que jamais aconteceu. Que jamais vai acontecer.
O gosto de sangue enche a sua boca e isso é nojento. Não é? Você acorda sobressaltado. Bebeu depois do trabalho? Porque definitivamente não acordou em casa. Piscou algumas vezes para tentar se achar. Alguma coisa grudada no olho se solta em flocos finos. Algum barulho chato em algum lugar tá te incomodando. Repetitivo e aumentando. Deve ter brigado onde quer que tenha bebido porque a mão tá cheia de sangue. Sangue. Adrenalina dispara na corrente sanguínea e em um instante está de pé. O coração batendo feito um martelo. Os olhos agora alerta devoram tudo ao redor.
O jardim, as estatuas. O jazigo com o magrelo espalhado na porta, um big mc devorado por um chapado lariquento. Todo bagunçado com o rosto intacto preso em uma expressão eterna de horror. O ar cheio de cheiros. Cheiro das plantas, todos diferentes. Flores, grama, folhas, caules, troncos. Tudo diferente. O sangue. Mais de um sangue. Diferentes todos eles. Nenhuma gota é sua. Seu cérebro sabe disso mesmo sem nenhuma palavra dentro da sua cabeça caber nesse conhecimento. O cheiro das roupas do magrelo, jeans rasgado, o couro da jaqueta era verdadeiro. Em algum lugar um isqueiro tinha quebrado e vazado fluido. O lugar era cheio de luz. Mas o sol ainda não tinha nascido. O céu começava a mudar de cor.
Tentava encaixar o que tinha acontecido antes e ficava cada vez mais confuso. Cada vez pior. O barulho aumentava. O tique-taque de alguma bomba relógio. Mais perto. Um arrepio chama a atenção para dentro de si. A pele molhada com orvalho está fria e coberta de sangue. Mas nada de roupas. Nenhuma dor. As mãos passam pela corpo procurando cortes e não acham nada. Exceto, liso demais. A pele toda está como uma daquelas garotas que se besuntam toda noite em hidratantes. O dedo mindinho que não dobrava totalmente por conta de uma facada em Polotown agora estava novo em folho. A cicatriz charmosa no queixo era coisa do passado. O caroço na canela esquerda também não estava mais lá, presente de um muro coberto de trepadeiras. Não confie nas trepadeiras.
Um clique. Passos. O tique-taque eram passos. Mais longe do que fazia sentido poder ouvir. Um instinto poderoso exige que fuja e não seja visto. Os passos dão a volta pelo jazigo e então é só dar a volta pelo outro lado. Seu corpo se move sem permissão um segundo antes de decidir que vai fazer exatamente o que ele já está fazendo. Você se alinha com os passos e sincroniza seus movimentos. Rapidamente já está do outro lado do jazigo e espelha os movimentos de quem quer que seja. Quando chegar a borda, pode correr até o muro evitando ser visto. Mas tem alguém te esperando quando chega lá.
“Shaw, que sorte te encontrar aqui!” A voz dele não tem nada de ameaçador e nem impressionante. Parece um calouro da faculdade que saiu de um bairro pobre onde não tinha comida na mesa “Eu sou Richard, prazer. Eu sei que tá desconfiado e tudo mais e não parece a hora de conversar.” Ele te estende um celular, seu celular manchado de algo que deve ser sangue. Na outra mão ele tem um short azul e uma camiseta que já foi verde.
Filho da puta silencioso. Não o tique taque. Ele continua atrás de você.