Emergindo de onde antes não havia nada, um som curioso e breve, quase inaudível, ecoou até alcançar sua atenção e despertar sua consciência. Poderia sentir-se anestesiado e leve, mas ainda que tentasse não conseguiria se lembrar do que estava fazendo antes de estar ali. E então escutou o mesmo som de novo, de novo e de novo, cada vez mais próximo. Tentou abrir os olhos apenas para perceber que eles já estavam abertos, mas onde estava só havia escuridão para enxergar. Foi quando o mesmo som emergiu mais uma vez, agora tão próximo que era possível identificar sua origem: gotas de água em queda livre, como chuva escoando vagarosamente de um telhado.
Antes que os pensamentos viessem e lhe ocupassem a mente, um novo som surgiu junto de um forte feixe de luz na escuridão. Esse novo som era desagradável, barulhento e parecia estar vivo enquanto se repetia sem parar. Quanto mais se repetia, mais alto ficava e quanto mais alto ficava o som, mais o feixe de luz se expandia para revelar uma visão em meio a escuridão.
- Spoiler:
Próximo a uma árvore seca, deitado na grama à beira de uma estrada lamacenta, se encontrava uma capa velha de cores avermelhadas que cobria alguma coisa aparentemente viva. Essa coisa se mexia por debaixo da capa com movimentos desesperados, como se pedisse ajuda, mas os únicos que vinham ao seu encontro eram os corvos: os mesmos que emitiam o som desagradável, como agora era possível ver.
Sem piedade, os corvos avançaram uma vez... duas vezes, três vezes. A cada novo ataque sobre a velha capa e seu conteúdo, os movimentos da coisa que pedia ajuda se tornavam mais lentos, mais próximos de cessar completamente. Conforme isso acontecida, a visão que mostrava aquilo tudo ficava mais e mais embaçada... e então...
O som de crianças cochichando.
Roee desperta de seu sonho em sua cama no seu quarto. A sensação de anestesia do curioso sonho (ou pesadelo?) estranhamente ainda permanecia em seu corpo, mas pouco a pouco estava indo embora. A julgar pela claridade que entrava em seu quarto através da shōji (porta de papel), podia ver que já era de manhã e o sol provavelmente acabara de nascer. Então ouviu mais uma vez o som de crianças cochichando, quase discutindo bem próximas à porta do quarto do experiente Nezumi de forma tão apressada que para alguém comum era quase impossível saber o que estavam dizendo. Roee, no entando, não era uma pessoa mediana.
Conseguiu pescar as palavras "cale-se", "idiota" e "acorda-lo" entre os sons confusos que aquelas duas pequenas pessoas produziam à sua porta. Saberia inclusive dizer a quem as vozes pertenciam: Kenji e Hideaki, ambos órfãos de pouca idade que haviam sido acolhidos recentemente com o propósito de servir o clã Oniyami. Roee não conhecia muito dos detalhes, mas aparentemente os dois eram sobreviventes de antigas famílias subordinadas ao clã ou filhos de vassalos. A única coisa que sabia era que os pais de cada haviam encontrado destinos horrendos, e por uma questão de honra as crianças foram aceitas para servir o clã da maneira como pudessem. Os dois eram esforçados praticantes dos treinos que Roee conduzia para os novatos, e ambos (diferente da maior parte do clã) tinham o Nezumi em alta estima e o respeitavam bastante.
Enfim, a porta na entrada foi puxada para o lado vagarosamente. Os dois estavam do lado de fora ajoelhados e um dos garotos timidamente colocou a cabeça para dentro do quarto, com receio de ser repreendido caso acordasse Roee de maneira repentina.
A voz do garoto parecia ser abafada até pelo som da brisa do vento batendo nas folhas das árvores do lado de fora. Não demorou nem um segundo para que uma mão aparecesse empurrando o rosto de Hideaki e então uma nova cara apareceu na brecha da porta, esta um pouco menos acovardada. Era Kenji, poucos meses mais velho que Hideaki e também mais atrevido, assim como sempre foi muito menos educado apesar de sua intenção quase nunca ser a de ofender. Igual Hideaki, Kenji também respeitava muito Roee.