Estava devendo o BG atualizado... Não estou mais
Histórico:
Madeleyne, Mady como gostava de ser chamada, estava de pé em frente a janela de seu apartamento, olhando a tímida movimentação das pessoas na rua, sem, no entanto, prestar realmente atenção ao que via.
Ainda segurava o aparelho de celular e, involuntariamente, o apertou entre as mãos quando pensou na mensagem que havia acabado de deixar na caixa postal de Abel pedindo para que ele retornasse a ligação.
Pela manhã havia recebido um convite, em nome de sua antiga cidade, para participar de uma cerimônia em homenagem aos mortos do incêndio do Colégio Santa Trindade e desde então não tivera um minuto de paz.
Ela respirou fundo.
Vinte e cinco anos. Parecia estranho pensar que já havia passado tanto tempo, quando as sensações daquela tragédia ainda eram tão presentes em sua vida.
Se não fosse pelo incêndio, Mady poderia dizer que tinha boas recordações de Colina Santa, onde passou toda sua infância e parte da adolescência.
Lembrava com carinho dos seus pais a ensinando a andar de bicicleta na calçada em frente a casa. E dos almoços especiais aos domingos, quando toda a família podia compartilhar a refeição com calma, sem a correria dos agitados dias de semana.
Nesse momento ela olha para o celular e sorri. Outra lembrança boa de Colina Santa eram os vizinhos.
A família de Abel havia sido vizinha da sua por anos e ao reunirem os moradores em uma confraternização, ela o conheceu quando tinham seis anos de idade.
Embora Mady tivesse sido uma criança quieta, que preferia brincar sozinha, por algum motivo ela gostou dele e logo fizeram amizade.
No início da adolescência a diferença de comportamento entre os dois ficou mais acentuada.
Enquanto ela gostava de ficar sozinha em algum canto da escola desenhando, Abel estava sempre rindo e brincando com os amigos. E mesmo sendo tão diferentes, ele não havia mudado seu jeito com ela, tentando sempre convence-la a se juntar a “galera”.
E foi esse jeito alegre e amigo que aos poucos foi conquistando Mady e ela percebeu que havia se apaixonado pelo amigo de infância.
Tímida e com medo de estragar a amizade que tinha com ele, Mady nunca falou nada para o amigo. O máximo que fazia para expressar seus sentimentos era dar para Abel alguns dos desenhos que fazia dele, quando estava distraído com alguns amigos. Isso era fácil, pois ela sempre usava a desculpa que estava aprimorando suas técnicas de desenho, para que ele pudesse ver a evolução entre um desenho e outro.
Mas a verdade é que Mady não sabia se um dia teria tido coragem de se declarar, pois meses depois de perceber o sentimento por ele, Colina Santa viveria sua pior tragédia, quando o colégio em que estudavam foi consumido pelo fogo, ceifando a vida que praticamente todos os alunos e professores.
Tragédia da qual ela participou, sendo uma das sobreviventes junto com Abel e mais quatro alunos da escola.
Daniel, que dos quatro era de quem ela era mais próxima se assim poderia dizer, era um rapaz quieto e calmo com quem ela gostava de conversar nos tempos vagos da escola. Ela sabia que ele gostava de animais e sempre que tentava desenhar algum usando uma técnica nova de desenho e gostava do resultado, acabava dando o desenho para ele. Ela nunca soube se ele gostava de receber esses desenhos, mas ela se sentia bem ao fazer isso.
Hanna, com quem ela tinha pouco contato, era uma garota popular, tão diferente dela própria. Se conheceram quando, vez o outra, a garota ia entregar alguma encomenda que sua mãe fazia a dela. Mady admirava o jeito como Hanna parecia ser segura, embora muitas vezes parecesse que ela tinha um olhar triste. E sabia que mesmo parecendo ser durona, Hanna tinha um bom coração. E se sentia feliz por ela ter aceitado manter contato mesmo após se tornar famosa.
Arthur, na época de escola eles praticamente nunca se falavam e ela tinha o contato dele apenas para mandar mensagens casuais de feliz aniversário ou nos natais. Era nítido que ele preferia ficar na dele sem ser incomodado, mas ela não desistia de manter contato e não o deixar se isolar.
Por fim, Gláucio. Ele não era de Colina Santa e durante algum tempo parecia deslocado entre os alunos. Por um desses acasos da vida, em uma das aulas eles sentaram próximos e ele se interessou por seus desenhos. Assim como fazia com Daniel, ela chegou a dar alguns desenhos dos personagens preferidos dos jogos de luta para ele. O contato entre eles depois da tragédia não era tão frequente, mas ela deixou um recado na caixa postal dele avisando que os demais também voltariam a Colina Santa.
Pensar em voltar lhe causava arrepios.
De verdade ela não tinha lembranças daquele dia e sua terapeuta dizia que essa havia sido a forma que sua mente havia encontrado para protegê-la do trauma, mas isso incomodava.
Não havia lembranças, mas havia sensações... e pesadelos.
Vinte e cinco anos depois e Mady vez ou outra ainda tinha sonhos estranhos que atribuía ao dia do incêndio.
Nesses sonhos ela sempre estava em algum lugar quase totalmente escuro, cheio de corredores. Ouvia sons de gritos ao longe. Cheiro de carne queimada. Ela corria tentando encontrar saída e por vezes parecia que mãos saiam da parede e tentavam agarrá-la.
As vezes esses sonhos a remetiam ao passado, mas algumas vezes ela sentia como se algo a chamasse, como se fosse algo que não aconteceu, como se ela estivesse retornado ao colégio.
Ela sempre acordava perturbada desses sonhos e três coisas eram certas nesse momento, ligar para conversar com sua terapeuta, desenhar o que pudesse se lembrar no fichário que tinha apenas para essa finalidade e que ela apelidara de “Death note”, como alusão a uma mangá que ela adorava ler na adolescência. E por último, uma prática que era mais recente, ligar para Abel e contar o que havia sonhado para saber o que ele achava.
Menos de um ano depois da tragédia, com dificuldade de estabelecer uma rotina normal, a família de Mady se mudou de Colina Santa.
Anos depois, já formada na faculdade, Mady conseguiu um emprego como ilustradora em uma importante editora e por coincidência acabou se mudando para a cidade vizinha a de Abel, o que acabou por facilitar o contato entre os dois.
Mady tinha uma grande nostalgia pelas lembranças da época de infância e adolescência ao lado dele, mas não podia dizer que ainda nutria por Abel os mesmos sentimentos que um dia sentira. Fato que tinha um enorme carinho e amizade especial por ele, mas a vida os havia afastado e mesmo se falando com alguma frequência por celular, se viram muito pouco no decorrer dos anos
A verdade é que Mady nunca havia perdido o contato com nenhum de seus amigos sobreviventes do incêndio. Fazia questão de falar com eles ao menos uma vez ao ano, para saber se estavam bem.
A dedicação ao trabalho e o estilo de vida não muito sociável de Mady a havia afastado não só dos amigos, mas da família. Não havia tido muitos relacionamentos, preferindo não se casar ou ter filhos.
Ansiosa, volta a se concentrar no momento presente e destrava a tela do celular, abrindo um aplicativo de mensagens, digitando e enviando rapidamente um texto para Abel onde falava sobre o convite e perguntava se ele poderia acompanhá-la até Colina Santa. Ela pretendia falar com ele sobre esse detalhe por telefone, mas estava ansiosa demais.
“Oi, recebeu o convite? O que vc acha? Vc vai né? Então... Vc poderia ir comigo? Tipo me encontrar aqui ou eu vou até ai, sei lá... Mas queria que fossemos juntos... Sabe, eu quero ir, mas não sei que consigo fazer isso sozinha”
Ela fecha o aplicativo e abre a agenda, procura pelo nome do Daniel e ao encontrar, liga para ele. Iria perguntar do convite, dizer que ela iria e saber se o encontraria em Colina Santa.