Conto: Ceifa (Pg. 28)
Ainda estou no chão com a cabeça virada ao contrário enquanto ouço o vento. Ele ruge como um furacão nos meus ouvidos, mas não sinto a menor sensação dele tocando meu corpo. Isto é, se ao menos eu tivesse um corpo!
Eu fecho os olhos com relutância e aprecio a escuridão crescente, tentando lembrar exatamente o que houve. Minha cabeça é invadida por imagens fragmentadas e lembranças vagas que eu mal posso começar a unir os cacos.
Uma das piores imagens, contudo (e uma das que mais fazem sentido) é a de uma figura borrada se debruçando sobre mim. O rosto da pessoa desaparecendo nas sombras. Lembro-me de ter sentido mais do que visto seu olhar penetrante. E lembro-me como minha visão foi estranhamente distorcida, como se eu estivesse debaixo d’água olhando para o céu em sua superfície. Para qualquer lugar que olhasse, flocos de luz brilhante surgiam e estouravam numa cortina de energia. Tudo, eu lembro, foi tomado por uma penumbra escura e densa até que, de alguma forma, essa figura fez algo para que aquela penumbra desaparecesse. Sinto uma leve rajada de medo e essa lembrança logo se esvanece.
Eu lembro de um momento de dor, como se uma camada de pele fosse arrancada do meu rosto. Tenho certeza que a figura falou comigo, não lembro o que ela disse, contudo. Não tenho certeza se quero lembrar. Só de pensar nisso tenho calafrios que gelam os ossos.
Requer um enorme esforço, mas finalmente consigo me sentar. Abraçando os joelhos firmemente com ambos os braços. Olho para a rua acima e abaixo, tentando descobrir onde estou, mas nada me parece familiar. O vento sopra com um assobio alto como um apito. As construções dos dois lados da rua são escuras e assustadoras. Janelas quebradas e portarias escuras parecem tomar conta de suas dependências.
A noite de verão estava quente, com o ar cheio de umidade, mas agora eu não tenho qualquer sensação de temperatura. Mesmo o ar parece estranhamente neutro e... distante. Meu senso de tempo parece distorcido também. Não faço ideia de quanto tempo passou desde que estava na ponte, olhando o rio abaixo. Podem ter sido minutos ou dias... pode ter sido por toda uma vida. Será isso? Estou morto? Me pergunto por um minuto, mas rapidamente esqueço a ideia.
Meu conceito do que é a morte não inclui autoavaliação. Sempre imaginei que a morte fosse puro e total esquecimento e era isso que eu procurava hoje à noite. Esquecimento. Aquela palavra, pronunciada por uma voz dentro da minha cabeça, me enche de medo e eu mal posso resistir à estranha sensação de que eu havia sido removido da realidade, que de alguma forma eu flutuava fora da realidade numa bolha e olhava pra ela.
“Mas que merda está havendo aqui?” eu sussurrava, surpreso com o som seco da minha própria voz. Me levanto devagar e espalmo as mãos. Elas fazem um som fantasmagórico que ecoa assustadoramente pela noite. Estremeço ao olhar para minhas mãos. Posso senti-las se tocando, mas é uma sensação que estranhamente não está associada ao toque, como se eu usasse luvas de borracha. Uma dor solitária me preenche quando descubro que não reconheço o lugar onde estou.
Obviamente não lembra nenhum lugar próximo à ponte da East Street. Ainda é noite, pelo menos disso eu tinha certeza, mas não posso saber se é ou não a mesma noite que decidi dar um passeio pela ponte. A luz dos postes ilumina a rua com feixes de luz em tons de roxo e azul lançando pequenas sombras pelo chão. O céu noturno parece fechado e denso, como uma neblina baixa.
Quando levanto a mão até a testa, as sombras que são lançadas pela rua se desfazem como um ninho de cobras aos meus pés. Eu tremo ao dar um único passo, mas o efeito de várias sombras se movendo comigo me desorientou completamente e perco o equilíbrio quase caindo. Me agarrando, olho ao redor e vejo que estou no meio de uma débil rua de uma cidade que parece abandonada.
Para qualquer lugar que eu olhe, vejo sinais de podridão. Consigo captar pequenos movimentos nas sombras, mas sempre que olho diretamente para eles, não posso ver o que os causam.
Uma sensação de frio estremece minha espinha até a base da nuca. Não consigo deixar de pensar, que na escuridão, alguma coisa me observava e estudava cada movimento. Eu quero andar, só pra fazer algo, mas não tenho ideia de qual direção seguir até que ouço um leve bater de pés no chão bem atrás de mim.
Me viro para ver uma figura sombria lentamente vindo em minha direção. A silhueta é assustadoramente familiar. Uma perna (a esquerda) se arrasta atrás dele como se estivesse paralisada. A luz dos postes contrasta com seu rosto, deixando os sulcos do rosto e seu pescoço numa escuridão profunda. Enquanto a figura se aproxima, posso notar que é um homem (ou ao menos algo que havia sido um). Seu rosto parece decomposto. Com pedaços de pele apodrecida pendurados na testa e bochechas que balançam a cada passo dado.
“Pare bem aí.” Eu digo, surpreso comigo mesmo pela força em minha voz. A figura ameaça parar, apoia-se de lado, e me encara. A luz alcança seu olho direito, fazendo-o brilhar com uma luz apavorante. “Eu farei o que eu quiser fazer.” O homem diz. “Não preciso de você para dizer o que fazer.”
por 
