O VOO DA MORTE

O dia que precedia uma nova missão era sempre de muita ansiedade. Com o envelope do briefing aberto na mesa à frente do primeiro dos três monitores que eu utilizava em casa, as várias folhas se espalhavam ao redor do teclado em pontos que eu pudesse as ler. A tela do monitor mais à esquerda estava ocupada com um filme, Premonição, que já estava pela metade, e hora ou outra eu me pegava mais concentrado em assisti-lo do que realmente revisar as informações que tínhamos sobre a relíquia que devíamos recuperar e escoltar até um local onde ela estaria seguro. A escolha não tinha sido aleatória: como um tipo de piada comigo mesmo, optei por um filme de desastres aéreos para distrair a mente já que estaria em um avião em poucas horas. Com o monitor da direita repleto de anotações sobre a missão que reescrevi como forma de fixar os detalhes na mente, passei os olhos por alguns termos destacados e dei uma risadinha ao ler o nome da cidade para qual estávamos indo.

Girando a cadeira um pouco para o lado, observei as roupas dobradinhas ao lado das malas e suspirei ao me levantar; estava com preguiça de terminar de arrumar tudo. De pé ao lado da cama, dei uma breve espiada no monitor central. Com o fundo tela completamente preto enquanto vários números e códigos iam rolando para cima, lembrei do fatídico acontecimento que eventualmente fez eu me tornar um agente da Ordem e uma sensação de alívio tomou de conta. Eu podia estar morto àquela altura, ou ter tido algum fim ainda pior do que este, mas estava bem. Me juntar à Ordo Realitas era o menor dos preços que eu podia pagar. A psicóloga da Ordem falou uma vez que eu era muito forte por continuar me envolvendo com sites duvidosos e tecnologias suspeitas depois disso quase ter me condenado, já que a maioria das pessoas provavelmente sairia traumatizada desse tipo de experiência e iria preferir nunca mais tocar em um computador na vida. Quando ouvi aquilo, dei uma risada desconfortável que ela pareceu não entender e eu também não quis explicar. No entanto, ali sozinho no quarto escuro iluminado apenas pelo brilho das telas do outro, eu me permiti responder.

— O meu trauma é justamente o que me obriga a continuar, doutora, eu só não gosto de pesar o clima.


— Gente, me espera! — gritei vindo de longe. Quando finalmente me aproximei, agora um tanto ofegante, dei um grande sorriso com os olhos quase que completamente fechados — É um prazer, sou o Byte.

Com roupas folgadas e confortáveis, incluindo uma jaqueta de couro larga tingida da minha cor favorita, uma bolsa de estilo esportivo como mala de mão e puxando uma mala de rodinhas rosada com a outra, eu quase tropecei nos meus próprios pés algumas vezes enquanto corria para acompanhar os outros agentes pela vistoria do raio-x. Como um agente jovem, eu já tinha tido tempo para me acostumar a ser o mais novo das missões. Eu sei que a galera mais velha tem costume de ver os mais jovens como imaturos e inexperientes, mas eu não era nada inexperiente! Bom, ao menos no que diz respeito às habilidades que me tornaram útil para a Ordem. Eu não conhecia aqueles outros dois caras, mas reconheci seus rostos do briefing que estudei no dia anterior, então pensei que eles também facilmente me reconheceriam. Quer dizer, meu cabelo não deixa que eu me perca no meio da multidão, certo?

Eu não protestei sobre não levar o revólver, o punhal e as munições na bolsa de mão como eu tinha me planejado, afinal eu entendia bem sobre as regras de segurança do aeroporto e tudo o mais, apesar de não ser muito fã de burocracia. Se eu quisesse MUITO entrar armado no avião, eu provavelmente conseguiria com algumas trambicagens aqui ou ali, mas por que eu faria isso? Quer dizer, ainda estávamos nos deslocando pra cidade da operação, não é como se eu fosse precisar atirar em alguém durante o voo. Assim, me mantive apenas com os outros equipamentos, que poderiam até ter alguns minimamente suspeitos, mas eu poderia facilmente inventar uma desculpa ("pra quê as algemas? ai, moço, não gosto de falar das minhas intimidades assim..."). De todos ali, os únicos de que eu não abriria mão MESMO eram meu notebook e meu celular. De resto, nada que eu não pudesse sobreviver sem por algumas horas.

Quando finalmente embarcamos, meu primeiro pensamento foi sentar nos fundos para ser um dos primeiros a ser servido quando passassem com o lanchinho de meio de viagem, mas então um dos meus parceiros sugeriu realmente ficarmos ao final para ter uma visão mais ampla da aeronave e eu apenas concordei balançando a cabeça como quem diz "claro, eu também pensei a mesma coisa". Enquanto caminhávamos, eu discretamente me apressei para tentar pegar um lugar ao lado de Judas, que por algum motivo tinha chamado minha atenção com sua vibe mais grunge, o completo oposto da minha. Se ninguém protestasse por eu ter acomodado ali ao lado, eu tiraria o notebook da bolsa antes de acomodá-la no bagageiro para a decolagem e o apoiaria nas pernas, pronto para abraçá-lo próximo ao corpo quando o avião começasse a se mover.

— Maneiro o seu nome. O que significa? — perguntei de repente olhando na direção do homem ao meu lado. Eu não sou religioso, mas Judas é tanto um dos nomes mais famosos da bíblia, como também uma forma popular de chamar alguém de traidor. Me peguei pensando o que levou alguém a batizar o próprio filho com um nome tão negativo pra grande maioria das pessoas, mas que talvez apenas tivesse algum outro significado que eu da minha posição de leigo não consegui entender.

A resposta de Judas me pega de surpresa fazendo minhas sobrancelhas se arquearem por um breve segundo; não consegui segurar minha reação mais natural por um instante, mas então inclinei o corpo para frente e fingi tossir apenas para disfarçar. Eu entendo que os mais velhos costumam ser mais requintados, mas não estava esperando o seu jeito ultra formal (ao menos pra mim) de conversar. Encostando o tronco por completo no banco novamente, me espreguicei colocando força nos braços com as mãos apoiadas no notebook ainda fechado, erguendo um pouco os ombros de olhos fechados.

— É tipo um apelido seu então? — apesar de estar empolgado com aquela conversa, desci um pouco o nível da energia pra tentar igualar a vibe de Judas. Como de costume, os mais velhos sempre acabavam quebrando o clima de calmaria empolgante pré-missão com seus tons profissionais e palavras complicadas — Byte não é meu nome real registrado também, mas não é só um apelido, meus pais que me chamaram assim quando eu nasci. Parte da minha família é estrangeira e nossos nomes são grandes e complicados demais pra maioria das pessoas, então é costume nos darem um nome mais simples. Não que... Byte seja o nome mais fácil que eles podiam escolher. "Bíti". — expliquei fazendo aspas com as dedos ao demonstrar verbalmente a pronúncia errada e mais comum do meu nome Brasil a dentro. Apesar de estar tentando ser sério, eu acabo sendo tagarela. A única diferença mesmo é só o tom de voz tentando emular algum tédio corriqueiro, mas está claro que estou interessado em saber mais de Judas. Não continuaria tentando render o assunto se fosse o contrário!