Metal e Fogo

A vida de Katon, o Filho de Fogo Eterno, havia mudado desde que ele entrada para o exército de Sundabar, há alguns meses atrás. O pequeno elemental de fogo havia deixado para trás às sombras da caverna em que vivia para ter uma vida na superfície o mais próxima possível do normal. O clima frio já não castigava-o tanto quanto antigamente; o que o incomodava agora eram os olhares frios que os soldados do exército lançavam a ele. Os homens não pareceram aceitar bem a ideia de ter um companheiro de batalha que vivia em chamas e que com isso poderia queimá-los por acidente, mas Katon tinha o agrado de Ilbrim Sarkro e de Helm Amigo dos Anões, e portanto ele foi aceito nos quartéis da cidade.

Katon recebeu um treinamento de soldado e de vez ou outra participava de alguma missão pelas Fronteiras, sendo que a maioria delas era de proteger caravanas que percorriam as duras estradas do Norte. Quando Helm convocou os homens para finalmente partirem para a guerra, Katon também fora chamado e seu coração alegrou-se com a oportunidade. Mas ao chegar em Lua Argêntea ele ficou sabendo que não iria para a guerra no Salão de Mitral, afinal de contas; o seu dever seria proteger a Gema do Norte enquanto as forças da Liga das Fronteiras Prateadas estivessem nos campos de batalha contra Obould nas cercanias da fortaleza de Bruenor. O elemental, portanto, havia presenciado o ataque dos dragões negros que devastou parte da cidade de Lua Argêntea; dois dragões adultos e ferozes de escamas negras haviam destruído construções e matado algumas centenas de vidas. Algumas dezenas de dias depois, ele ficou sabendo que o Salão de Mitral caíra perante os orcs e que os exércitos derrotados estavam voltando à cidade. Apesar de toda a infelicidade com o resultado da guerra, Katon teve um breve reencontro com alguns de seus antigos companheiros - membros pertencentes a primeira Comitiva das Fronteiras criada por Alustriel.

O período agora era de calmaria. Obould estava estabelecido no Salão de Mitral e Lua Argêntea não economizava esforços para se reconstruir o mais rápido possível. E o melhor de tudo era que o inverno rigoroso havia terminado e com isso chegou a primavera e dias mais quentes. Num belo dia de sol, quando Katon passeava pelo campo de treinamento de um dos quartéis militares da cidade, ele avistou um grupo de forjado bélicos que chamou-lhe a atenção. Eram quatro ou cinco forjados reunidos, todos eles grandes e ameaçadores, ao redor de um único construto de mesma espécie: Ardanthur. O velho amigo de Katon parecia estar sendo provocado pelos gigantes de aço, e Ardanthur tinha a lança numa das mãos em posição de defesa.

Katon se aproximou do grupo de forjados bélicos atraindo imediatamente a atenção de todos. Ardanthur virou o rosto em sua direção, mas nada falou. Já o forjado que estava à frente de Ardanthur - uma verdadeira fortaleza de aço tal era o seu tamanho e a sua imponência - possuía um poderoso martelo no lugar de um dos braços e ele usou a arma para apontar ao recém-chegado.

- Você é o cachorro-de-Helm, não é? - Sua voz parecia o ribombar de um trovão estremecido. - Você não é bem-vindo entre o meu povo.

Ardanthur mexeu-se de sua posição imóvel, incomodado com o que ouvira, e falou pela primeira vez.

- Ele não é cachorro algum. Ele é Katon, o Filho de Fogo Eterno, e é meu amigo. Ele ajudou os anões da Velha Cidade a forjar os nossos corpos, e eu não vou permitir que vocês o ofendam como ofendem a mim.

Ardanthur parecia ter aprendido mais rapidamente a falar o comum do que o elemental de fogo. Ardanthur já não escorregava nas palavras como antes e dizia-as com certa confiança e autoridade. Os demais forjados bélicos não haviam ficado impressionados com as palavras de Ardanthur, sobretudo o maior deles, o gigante com o martelo no lugar do braço direito; ele o encarava com atrevimento, como se estivesse esperando uma desculpa qualquer para fazer o que queria fazer desde o princípio.

- Eu sou Belgen, Punho de Pedra, o segundo em comando de nosso batalhão, e você é apenas um soldado - declarou o gigante forjado elevando a voz. Ardanthur obviamente já estava bem ciente disso, mas Belgen apenas quis refrescar a sua memória da posição inferior a qual ele se encontrava. - Não importa que favores no passado você recebeu de Helm ou de Alustriel, aqui em nosso exército, na Terceira Muralha, você é só mais um qualquer. Caso não tenha entendido, eu estou dizendo que você é descartável.

O Punho de Pedra uma vez apontou a cabeça-do-martelo em direção de Katon.

- Saia daqui e não volte a se intrometer em nossos assuntos, ou...

O gigante de aço simplesmente deixou a ameaça subentendida pairar no ar.

Os forjados bélicos sob o comando de Belgen parecem surpresos diante do enfrentamento do elemental. Eles se entreolharam, receosos, e depois viraram seus rostos em direção à Belgen. O líder deles parecia tão surpreso quanto eles; evidentemente ele não estava acostumado a receber ameaças, ainda mais vindo de um ser tão pequeno. Recuperando a postura, Punho de Pedra disse:

- Foram os anões ou os humanos que ensinaram-no a fazer ameaças? - perguntou, para logo em seguida complementar: - Não importa; eu lhe ensinarei de que nunca se faz uma ameaça a alguém como eu, criado para a batalha e para a guerra. Eu, Belgen, Punho de Pedra, desafio o cachorro-de-Helm a um combate, apenas eu contra ele. Pegue a sua arma se não for um cachorro que apenas sabe latir.

Os demais forjados bélicos abriram espaço para Belgen tomar a dianteira, enquanto Ardanthur ficou ao lado de Katon. Ardanthur não disse nada, mas o olhar que lançava a seu amigo de fogo dizia que não era necessário isso. Desafios a duelos eram bem frequentes entre os forjados bélicos, e Katon sabia bem disso; um forjado que recusasse um duelo seria sempre marcado como um fraco entre o seu povo, e por isso Ardanthur não disse em voz alta para o elemental desistir do combate. Katon não era um forjado e portanto não precisava seguir os costumes desse povo bélico; contudo a decisão naquele momento cabia somente a ele.

- Boa sorte, amigo.

Ardanthur desejou sorte a Katon e depois deu dois passos para trás. Todo o foco agora estava voltado para Belgen, Punho de Pedra, e Katon, Filho do Fogo Eterno, o ser de metal contra o ser de fogo. Belgen parecia impenetrável em sua armadura; no lugar de um dos antebraços, ele tinha um pesado martelo de guerra, enquanto na outra mão (ele tinha uma mão no antebraço esquerdo) carregava consigo um grande e redondo escudo de metal. Belgen encarava Katon através das fendas de seu elmo acoplado à armadura, e de alguma forma o seu olhar parecia ameaçador.

BUM!

Belgen usou a cabeça do martelo para bater com força em seu escudo, fazendo o som ecoar pelo pátio de treinamento. Isso acabou chamando atenção de outros soldados da Terceira Muralha. Punho de Pedra não deu a miníma para isso; toda a sua atenção estava voltada para Katon.

- A sua lição começa agora!

Katon era menor, e portanto mais rápido. Seu oponente foi lento demais para reagir quando o pequeno elemental de fogo investiu contra ele de forma impetuosa. Katon abriu mão da precisão para desferir um ataque poderoso, esperando eliminar o seu adversário no primeiro golpe. Ele quase conseguiu.

O forjado bélico não teve rapidez o suficiente para bloquear o ataque de Katon, e sua armadura foi amassada com a força do impacto do golpe. Punho de Pedra ainda viu o calor do elemental, de alguma forma, se alastrar sobre sua placas de aço, esquentando o metal de tal maneira que o machucava por dentro. Belgen, ou Punho de Pedra, não emitiu nenhum chiado de dor ou rosnado. Ele deu um passo para trás, reposicionou o seu escudo e desferiu dois ataques com o martelo de guerra acoplado ao braço. O primeiro golpe caiu como uma massa de concreto sobre Katon, que não pôde se defender apropriadamente e sofreu um certo estrago. Porém ele já esperava pela segunda marretada, e quando ela veio, o elemental se desviou dando um passo para o lado.

O gigante de aço consegue desviar-se do primeiro golpe em chamas do elemental, mas Katon surpreendeu-o atacando logo em seguida com o outro braço, e então ele atingiu Belgen perto da altura do que seria a cintura da criatura. Punho de Pedra deu uma estremecida com a força do impacto, e, aparentemente ter ficado levemente irritado, desferiu um golpe bruto para baixo em direção ao seu oponente.

Katon conseguiu se esquivar facilmente do ataque desajeitado e cheio de fúria do forjado, mas a despeito do próprio elemental, Belgen também deu um novo ataque, erguendo a arma e acertando o seu rosto ígneo e abrindo uma nova ferida. Mas o elemental persistia no combate, assim como Belgen, ambos ainda confiantes na vitória. Os demais forjados bélicos, incluindo Ardanthur, assistiam calados à peleja.

Novamente, Katon só tem sucesso em acertar o segundo golpe, uma pancada poderosa em chamas que fez o forjado estremecer no chão. O elemental percebia que a armadura protetora de Belgen - que na verdade nada mais era do que o seu próprio ser - estava torrando devido o calor do fogo. Aquela era uma luta muda. Katon e Belgen evitavam gastar fadiga com provocações desnecessárias, e nem mesmo os espectadores falavam ou mostravam qualquer tipo de entusiasmo. O combate parecia estar sendo analisado atentamente pelos forjados que estavam ao lado de seu comandante, e por Ardanthur, que estava ao lado de Katon.

Belgen ergueu o seu martelo e mais uma vez arremeteu o seu braço em direção a Katon, de cima para baixo, e atingiu-o violentamente. Na volta do braço, o forjado deu uma nova marretada no rosto do elemental. Após levar duas bordoadas consecutivas, Katon sentiu que havia ficado em desvantagem no combate. Ele já estava razoavelmente ferido e sua mente estava começando a ficar exausta do combate. Ainda assim à peleja continuava sendo levada a séria por seu adversário, que não esperava nenhuma desistência de Katon.

Katon fazia-se valer das técnicas que tinha aprendido no exército de Sundabar, mas era difícil competir com alguém que fora criado unicamente com esse propósito: o de combater. Os forjados eram verdadeiras máquinas de guerra, uma sacada que Helm teve junto com os anões ferreiros arcanos de sua cidade. Forjados dentro de Fogo Eterno, esses construtos vivos eram impressionantemente resistentes e hábeis. Isso justificava a dificuldade que Katon estava tendo na luta.

Mesmo com tudo parecendo estar contra ele, o elemental não desistiria de provar o seu valor a um dos maiores campeões dentre os da espécie de forjado bélico. Katon desfere dois socos poderosos, um vindo da esquerda, que atingiu a perna de Belgen, que por sua vez se desequilibrou momentaneamente, e depois um cruzado da direita, atingindo o outro flanco do forjado. Desta vez Katon havia danificado uma das placas da armadura de Punho de Pedra.

- Seu monte de merda, ainda não aprendeu a lição? - esbravejou Belgen, pela primeira vez falando no combate e mostrando raiva.

Ele ergueu o braço com o martelo de guerra o mais alto que pôde, e desceu com tudo num golpe impiedoso, praticamente esmagando a cabeça do elemental de fogo. Depois ele desferiu o golpe da direita para a esquerda, novamente acertando o rosto de Katon, que ficou um tanto desnorteado depois de ter recebido essas duas pancadas. Belgen estava partindo para um terceiro ataque, mas passos foram ouvidos e uma voz autoritária clamou:

- Parem já com isso! - Katon não precisou olhar para reconhecer de quem era a voz: era de Ilbrim Sakro, o seu superior. Belgen não ousou desferir o novo golpe e teve que abaixar o braço. Ilbrim não estava sozinho; com ele vinha mais quatro soldados da mais alta patente. O comandante olhou de Katon para Belgen, e de Ardanthur aos demais forjados bélicos, e ele tentava entender a situação. - O que está acontecendo aqui?! Espero que não seja mais um daqueles duelos que vocês faziam nos subterrâneo de Sundabar, Belgen, pois você sabe que esses duelos foram proibidos.

Punho de Pedra não respondeu de imediato. Ele olhava para a rachadura em sua armadura que Katon havia provocado e tentava conter a raiva.

Ilbrim Sakro olhou para o ferimento na placa da armadura do forjado, e depois para Katon. De certo modo ele parecia impressionado com a habilidade combativa do elemental e Katon achou até mesmo que ele iria cumprimentá-lo pelo feito. Mas ao invés disso, Ilbrim ralhou com todos:

- Os nossos inimigos são os orcs, ou vocês se esqueceram disso? Belgen: você como o segundo em comando dos forjados bélicos, esperava mais responsabilidade de sua parte. E Katon: você não deve tentar resolver qualquer problema por conta própria e usando os seus punhos. Você tem os líderes dos batalhões para recorrer. Falarei com Helm para que todos vocês recebam uma advertência por escrito. - E quando ele dizia todos, estava se referindo também aos que assistiram passivamente o duelo. Após a bronca, Ilbrim voltou-se para Katon, aproximando-se do elemental e falando numa voz mais calma: - A Senhora Alustriel requer a sua presença no Alto Palácio. Se você não estiver precisando de cuidados médicos, deve ir imediatamente se encontrar com ela.

Belgen não olhou de volta para Katon; simplesmente ignorou-o, assim como ignorou Ilbrim Sakro. O forjado bélico parecia ter encarado aquela luta como uma derrota e talvez estivesse se sentindo humilhado demais para falar qualquer coisa. Katon ouviu Ardanthur murmurar um "obrigado, amigo" às suas costas, e Ilbrim acompanhou os passos do pequeno elemental em direção ao Alto Palácio, não sem antes ordenar para os forjados:

- Voltem para os seus treinamentos. O exército de Muitas-Flechas pode estar à caminho daqui neste exato momento.

Alguns minutos depois Ilbrim e Katon chegaram à moradia da Senhora Alustriel, o imponente palácio de mármore. Ilbrim acompanhou o pequeno elemental de fogo até o Salão das Boas Vindas, e depois despediu-se dele dizendo que tinha outros afazeres ali. Não demorou muito e Katon foi chamado pelo mordomo do palácio.

- Acompanhe-me, senhor Katon, a Senhora Alustriel o aguarda.