Ayana Ngozi Adichie

À medida que Ayana caminhava em direção à escola, o dia parecia ficar cada vez mais frio. Um arrepio percorreu suas costas e as pernas começaram a tremer. Ela andava como um pinguim, com passos curtos e as mãos agarradas nas alças da mochila formando duas asas. A entrada da escola estava quase tão distante quanto o topo coberto de neve de uma montanha. Pela segunda vez só naquela manhã, sentiu vontade de voltar para debaixo de seu cobertor quentinho.

Para onde quer que olhasse, cruzava com olhares de crianças que a encaravam. Cada expressão transmitia uma insegurança diferente. "Será que ele tá rindo de mim? Será que ela tá me achando metida? Será que meu cabelo tá feio? Será que ele tá falando dos meus pais? Será que ela acha que sou africana? Será que ele sabe como minha família morreu?"

O coração estava disparado e quando Ayana levou a mão ao peito, sentiu o pingente do colar escondido por dentro da blusa. Ela fechou os dedos em torno dele e sua mão começou a esquentar como se ela segurasse um copinho de chocolate quente. De acordo com Deus, isso acontecia porque dentro do relicário havia uma estrela minúscula como um grão de areia. Não dava para ver o brilho, mas dava para sentir o calor.

De alguma forma, essa estrela também iluminava o caminho que a garota deveria seguir. Assim que levantou o rosto, a primeira coisa que viu foi um grupo de quatro crianças olhando para ela só que de um jeito diferente e até com um toque familiar. Detalhes que só mesmo uma criança era capaz de sentir e que a faziam recordar dos irmãos mais novos. Insegura, ela se virou para o grupo e começou a se aproximar, torcendo para que não desviassem o olhar, dessem as costas e fossem embora. A reação foi bem diferente. Uma das crianças acenou e Ayana respondeu com um sorriso e caminhou mais rápido na direção deles.

- Oi! Eu sou a Ayana.

- Esse é o meu primeiro dia nessa escola.

Arnold não pode evitar de encarar Ayana indiscretamente. Ele havia ouvido falar da menina com dois pais, mamãe e papai geralmente sentiam pena da garota por isso, portanto, Arnold imaginava que ela seria triste ou no mínimo cabisbaixa, mas ela parecia feliz e sorridente.

Pensou em perguntar sobre a vida com dois pais, mas não sabia como a menina ia reagir. Então mordeu o lábio e se apresentou:

-Você pode me chamar de Burger, se quiser.

Oh céus, ele queria ter amigos diferentes, mas será que tão diferentes assim? O que papai ia pensar? Só torcia para que Thomas não aparecesse agora, ele adorava sacanear o pessoal novo "para ver do que eles eram feitos".

Ayana Ngozi Adichie

- Você pode me chamar de Burger, se quiser.

- Tá bom! - Ayana respondeu e deu uma risadinha. Pareceu um apelido bem engraçado quando ela imaginou um hambúrguer gigante do tamanho de uma criança gorda. Uma imagem que não tinha nada a ver com Arnold. Ele lembrava o personagem de um filme que ela assistiu na semana passada. Era a história de um menino, adotado por uma família, que não parava de fazer travessuras. Assim como Burger, ele tinha cabelos vermelhos e cara de pestinha. Embora fosse um filme engraçado, a garota esperava que a semelhança entre os dois parasse por aí.  

Não foi por falta de curiosidade que ela deixou de perguntar o motivo do apelido. O garoto parecia um pouco desconfortável, como alguém que organiza uma festa surpresa e começa a suspeitar que o aniversariante não vem. Haveria a hora certa de perguntar caso eles se tornassem amigos.

- Aquele... era o carro do seu pai? - Perguntou o garoto que, pela cara, Ayana poderia apostar que era o mais inteligente do grupo.  

Ela se sentiu entusiasmada porque na primeira vez que seu pai foi buscá-la no orfanato, ela também ficou admirada com aquele carro.

- É sim! Eu nem sei que carro que é, mas é bem bonito. Meu outro pai tem um… - ela engoliu as últimas palavras e sentiu como se tivesse engasgado. Como não entendia de carros, já esperava que iria se atrapalhar na hora de falar sobre o carro do outro pai… do outro pai… do outro pai. "Meu Deus", apelou logo para o amigo imaginário que estava ciente de todos os receios dela. Um deles era que descobrissem, já no primeiro dia, que ela tinha dois pais e nenhuma mãe - …tem um carro vermelho. - Tentou se recompor dizendo qualquer coisa para preencher os poucos segundos de silêncio. - Daquele tipo que não tem teto, sabe?

Sentia-se tão confusa e atrapalhada que não conseguiu se lembrar da palavra "conversível". Foi o bastante para concluir que, como não era possível se esconder enfiando a cabeça na terra como um avestruz, só lhe restou ficar de boca fechada e com cara de tacho.

Ayana Ngozi Adichie

O nervosismo durou poucos segundos, até que veio um alívio repentino, colocando para fora as borboletas de seu estômago, como um arroto silencioso depois de tomar um copo inteiro de refrigerante. Tudo porque as crianças não haviam notado aquele pequeno deslize. Ou até tinham, só não comentaram para não deixá-la ainda mais embaraçada, tendo que explicar como era viver com dois pais. Resistir à curiosidade de lhe fazer perguntas sugeria que Ayana havia encontrado um grupo de crianças em quem pudesse confiar.

Estava quase que se sentindo completamente à vontade, quando Arnold disse com empolgação que ela deveria ser muito rica. Sem saber o que responder, ela apenas abriu um sorriso acanhado. Pela primeira vez, ela tinha de fato se dado conta de que… vejamos: os pais moravam numa casa enorme, dirigiam carros luxuosos, compravam tudo que ela pedia. Portanto, sim, eles eram bem ricos e, por consequência, ela também se tornara bem rica. Mesmo diante dessa lógica irrefutável, ser rica era muito diferente de como ela imaginava que seria quando ainda era bem pobre. Continuava a mesma menina de antes da adoção, com a "pequena" diferença que agora ela consumia muito, muito, muito, muito mais.

À medida que a conversa prosseguia, as primeiras impressões de Ayana eram cada vez melhores. Os colegas estavam até planejando levá-la a um passeio na viatura do irmão de Harriet. Ela começava a achar que não poderia ter encontrado melhores companhias. E iria se agarrar a elas o quanto antes para não ficar mais sozinha e porque ainda se sentia bem insegura. Era o primeiro dia na escola afinal.  

- Você já sabe em que turma vai ficar, Ayana? Se quiser podemos te ajudar com isso…

"Espero que na turma de vocês", o pensamento passou na sua cabeça rápido como um avião e ainda bem que, dessa vez, não pousou na sua língua, nem saiu pela sua boca.

- Não, eu ainda não sei. Só sei que vou começar a quinta série. - Olhou para todos eles esperando que alguém dissesse que iriam estudar juntos. - E vocês? Estão todos na mesma sala?

Ayana Ngozi Adichie

As aulas nem tinham começado e Ayana mal podia esperar para contar todas as novidades para o seu pai. Ela já tinha feito quatro amigos e, até o final do dia, esperava conquistar pelo menos dez, contando com Oliver. Já se sentia ansiosa para conhecê-lo, afinal era bem provável que ele fosse tão legal quanto os outros. E se ela entendeu direito o convite de Harriet, eles chegariam a casa dele no carro da polícia, com aquelas luzes azuis e vermelhas piscando.

"Estamos aqui pra ajudar a prender os bandidos", pensou e levou a mão no relicário embaixo da blusa, que havia se transformado em um distintivo. Em meio aos devaneios, sentia-se mais e mais entusiasmada:

- Sim, eu quero ir com vocês! - Disse com uma euforia até exagerada porque sua imaginação a convenceu de que seria uma grande aventura.

Ao receber a confirmação de que todos estavam na mesma sala, Ayana quase deu um pulinho de alegria. Colocou-se na ponta dos pés e balançou o corpo para frente e para trás, sorrindo, até Harriet sugerir algo sobre... idiotas.

Ayana se virou para a direção onde sua colega olhava. Outra criança estava chegando. Alguém que havia deixado seus novos amigos desconfortáveis, a ponto de decidirem ir para dentro da escola. À primeira vista, o garoto no carro não parecia um idiota. Não parecia porque… ora, como um idiota deveria se parecer? Não sendo possível avaliar o livro pela capa, Ayana cutucou o braço de Burger e perguntou baixinho:

- É aquele o garoto que vocês acham idiota? - Apontou discretamente para Thomas.

No caminho para a entrada da escola, Ayana estava distraída olhando ao redor à procura dos irmãos mais novos. Quando seu olhar cruzava com o olhar de outras crianças, logo ela desviava o rosto. Sentia-se mais segura andando com um grupo, mas nem por isso todos aqueles receios haviam desaparecido.

À sua frente, Harriet, Blake e Jenny trocavam segredinhos e mesmo se coçando de curiosidade, Ayana resistiu à tentação de se aproximar "discretamente" como uma abelha rodeando um sorvete de casquinha. Não queria parecer intrometida, já que não tinha intimidade com eles. E, para sua surpresa, Burger também não tinha. Do contrário, por que haveriam de deixá-lo de lado?

Ayana foi a primeira a notar Arnald se afastando. Foi diminuindo o passo. À frente, os novos amigos se distanciavam aos poucos. No sentido contrário, Burger já estava bem distante. Sem saber direito para que lado ir, ela se virou para trás e gritou:

- Ei, Burger! Você não vem com a gente?

Antes que Burger se distanciasse do grupo, Ayana apontou para Thomas e perguntou se aquele era o garoto idiota. Sem tirar os olho do carro de Thomas respondeu:

-Ele não idiota, é só meio... - Não conseguiu arranjar um outro adjetivo para descreve-lo, infelizmente idiota era exatamente o que ele era, mas continuava sendo seu amigo.

Afastou-se do grupo e viu a porta do carro abrir quando ouviu Ayana chamá-lo. Virou-se para responder qualquer coisa que expulsasse a garota, porém antes que pudesse fazer alguma besteira Harriet segurou em seu braço e puxou-o, dizendo que ia precisar de sua ajuda.

Tentando parecer relutante, mas feliz de ser necessário, Burger seguiu seus... quase amigos...  pelos corredores até entrarem no armário do zelador. Então eram aqui que os perdedores se escondiam? Thomas sempre tentava encontrá-los, mas sempre se frustrava.

Foi então que Harriet fez a pergunta fatal. Juntos até o fim? Era isso mesmo que ele queria? Olhou para Ayana, ela parecia mais decidida, parece que de tantos problemas que enfrentou na vida iria se agarrar na primeira boia que oferecessem.  

Olhando para o chão, esperou a resposta da garota, caso fosse afirmativa, ele não teria escolha. Iria balançar a cabeça positivamente, sem olhar para o rosto de ninguém.

Ayana Ngozi Adichie

Começou a excursão na escolinha. Harriet era a guia e andava na frente indicando o caminho. Também era responsável por manter o grupo unido. Ayana achou que a garota daria um sermão em Burger quando o trouxe de volta agarrando-o pelo braço. Mas ela disse que precisaria de ajuda com alguma coisa, que agora parecia tão misteriosa quanto o interior de um sarcófago do Egito Antigo.

Ao andar pelos corredores do colégio, Ayana olhava para todos os lados como se estivesse passando na seção de vasos e ferramentas de um museu de arqueologia. Havia muita coisa para ver, mas nada interessante que exigisse uma observação mais minuciosa. Por isso, ela apenas seguia o grupo para não se perder e se afastar dos únicos amigos até então. Eles a levaram para um local que não poderia ser mais decepcionante: a sala do zelador.

- Por que a gente veio pra cá? - Perguntou olhando ao redor procurando alguma coisa minimamente interessante como o fóssil de uma vértebra de dinossauro. Só havia, no entanto, produtos de limpeza. Os mesmos que a menina usava para limpar a casa enquanto a mãe limpava as casas de outras pessoas.

Ayana ficou em pé ao lado de Burger, que parecia tão confuso quanto ela. Uma insegurança nova surgiu de repente. Eles realmente poderiam ficar naquela sala? O que aconteceria se o diretor os encontrasse ali? "Meu Deus", pensou Ayana, "será que eu fui falar justamente com o grupo dos encrenqueiros?"

- Não tem problema a gente ficar nessa sala? - Perguntou em voz baixa para que ninguém a escutasse do lado de fora.

Ayana olhou bem para cada um dos seus novos amigos. Eles não pareciam aquele tipo de criança que costuma arrumar problemas. Quer dizer, com exceção de Burger... ele sim tinha cara de pestinha, porém estava tão perdido quanto a garota. Foi então que Harriet fez uma pergunta direta; surpreendente se levar em conta que eles mal se conheciam. Evidentemente, Ayana não estava preparada.  

- Bem, Arnold e Ayana, vocês querem ficar com a gente? - Ela olhou para Jennifer e Blake, antes de focar nos outros dois de novo. - Não somos os mais populares da escola, mas vamos ficar juntos até o fim.

"Ficar juntos até o fim" foi o trecho que conquistou o coração de Ayana que saltava em seu peito como criança numa cama elástica. Ela olhou para Burger sem entender por que ele não parecia tão entusiasmado quanto ela. Seria por que eles não faziam parte do grupo dos populares? Ora, mesmo com a maturidade de uma maçã verde, Ayana não nutria a expectativa de que se tornaria uma criança popular na escola. Justamente porque ela era diferente, e por mais triste que seja, a verdade é que nem todos toleram as diferenças...

Agora, se gente intolerante desse tipo cruzasse seu caminho, ela tinha confiança de que poderia contar com os amigos. Era o que "ficar juntos até o fim" queria dizer, afinal.

Ela fechou os olhos e soltou um suspiro aliviado. Depois voltou a olhar para eles com olhos pretos como a noite iluminada pelas estrelas. Abriu um sorriso branco como nuvem no céu de verão e disse que ficaria feliz de se juntar ao grupo. Em seguida, deixou a mochila no chão e correu para se sentar à mesa, de frente para Jenny e Harriet. Uma vez oficializada sua participação no grupo, esperava que eles a pusessem a par de todos aqueles assuntos misteriosos.