[ON] Episódio 01 - Operação Cruzada

Já entardecia em Haifa quando os agentes deixaram o aeroporto a bordo do veículo executivo negro que os buscara. O clima fresco era um agradável misto de sol com uma fina garoa que refletia o pôr do sol no asfalto e nos carros com que cruzavam, bem diferente do calorão médio oriental que esperavam. Na verdade, Lacerda, acostumado às temperaturas cariocas, sentia até um pouco de frio devido ao forte ar condicionado do utilitário esporte em que estavam.

A pacata Haifa exibia uma beleza singular, característica de uma cidade costeira apelidada como a “Noiva do Mar”. Conhecida pela respeitosa convivência de árabes, cristãos e judeus, bem como a boa tolerância para com todas as nacionalidades, era raro ver ali aquela comum cena de zona de guerra, cheia de homens portando grandes armas pela rua. No banco de trás, Denis e Nathalie observavam através dos vidros do carro os curiosos contrastes daquele local que datava da idade do bronze, segundo diziam, palco de milagres e passagens bíblicas no grande Monte Carmelo que se assomava no horizonte.

No rádio do carro, o locutor supostamente narrava o período comercial, coisas incompreensíveis em hebraico, soltando uma animada música eletrônica ao final. Estar naquele lugar, era para os três, uma experiência no mínimo notável. Toda a diferença cultural e geográfica que vinham experimentando nos últimos tempos, desde o treinamento na Carolina do Norte até a chegada ao Oriente Médio, os remetia àquele recorrente sonho juvenil de conhecer o mundo, e o divertido coleguismo que criaram nesse período juntos, exaltava ainda mais o clima “mochilão”. O fato dos três compartilharem a mesma língua, cultura e origem, ajudou muito nessa aproximação. Treinaram e voaram juntos, e agora iam para sua primeira missão pela Blackwater, também juntos.

Após 20 minutos, o grupo deixava o perímetro urbano de Haifa e se encaminhava para uma área mais agrícola da cidade, com ares de um pequeno vilarejo. O pavimento de pedra fazia o veículo em que estavam se movimentar em um leve sacolejo até que estacionaram em frente a um sobrado com traços arquitetônicos coloniais. Postado em pé na soleira da porta, estava um homem de feições amigáveis, trajando um casaco de couro marrom e portando um guarda-chuva fechado em sua mão esquerda. Tão logo ele percebe a aproximação do veículo, arma o objeto e caminha até o carro, abrindo a porta para Nathalie, protegendo-a da chuva enquanto saúda os recém-chegados.

— Shalom! Bem-vindos a Terra Santa! Meu nome é Noah e sou o encarregado desta instalação. Queiram me acompanhar, por gentileza.

No interior do antigo prédio, Sarah aguardava confortavelmente sentada em um dos estofados de couro marrom que adornava a sala. O ambiente de tom creme, decorado com uma bela tapeçaria e todo adornado em madeira era aconchegante. Tinha uma grande janela lateral, contraposta a uma mesa, com um longa cortina que se encontrava aberta, através da qual podia-se ver um belo jardim e sentir uma refrescante brisa marítima. Haifa não era desconhecida para ela e o familiar cheiro do mediterrâneo lhe trazia felizes recordações do passado, de quando seu pai a trazia em peregrinação ao Monte Carmelo, local santo onde o profeta Elias teria provado aos falsos profetas de Baal de que o Deus de Israel era o único e verdadeiro Deus. Essa não era a única passagem do local, e nem as peregrinações as únicas vezes em que Sarah estivera ali. Quando no curso de arqueologia em Tel Aviv, teria percorrido grande parte dos locais históricos de Israel em estudo. Agora, ironicamente, lá estava de novo, porém, para outros fins.

Em pé encarando a mesma janela pela qual Sarah olhava se perdendo em pensamentos, estava Eduardo. Tomava um denso e saboroso café árabe que lhe embaçava os óculos com seu vapor agradável. Obcecado por segurança como era, observava todos os pontos daquela casa se perguntando como podiam chamar aquilo de "segura". As janelas da sala davam plena visão do interior, as demais, juntamente com a porta dava direto pra rua, sem a proteção de portões ou de um muro reforçado e não pareciam possuir nenhum dispositivo avançado que lhe proporcionava segurança, além dos dois homens que lhes faziam companhia, armados com pistolas AK dependuradas sobre o peito. Em um estalo, deu um breve suspiro consigo mesmo. Recorrentemente, pensava até onde sua tara por segurança de instalações era uma precaução genuína ou algum tipo de compulsão. No fundo, até a ocasião desta missão não era lá muito confortável para ele, sentia-se muito mais seguro trabalhando apenas com a CIA do que em parceria com outras instituições, mas enfim, ordens são ordens.

Noah parou no hall de entrada, limpando o solado das botas em um pequeno capacho. Parecia um sujeito simpático e sorria enquanto conversava com os recém chegados, ajudando-os a pendurar seus casacos. Caminhou sala a dentro, gesticulando com as mãos para que o acompanhassem, e tão logo o fizeram, iniciou as apresentações em um forte sotaque hebraico.

— Senhores, senhorita, sejam bem vindos à nossa humilde casa! Estes são meus homens, Benjamim e Gael - diz mostrando os dois homens armados - Aquele senhor de óculos é Eduardo, CIA, e esta bela senhorita é Sarah, uma colaboradora do Mossad que foi indicada para trabalhar conosco - e então, dirigindo-se ao homem e à mulher que já se encontravam ali, continuou - Sarah, Eduardo, estes são os agentes que integrarão a equipe junto com vocês, Nathalie, Lacerda e Denis, do Brasil. Sentem-se, meus amigos, fiquem à vontade.

Noah observava perplexo a conversa que se desenrolava na sala da casa segura. Por mais que desempenhasse aquela função há anos, ainda era impressionante para ele como toda conversa num grupo de novatos acabava em troca de farpas e disputas infantis. Por outro lado, sua experiência sempre lhe reconfortava ao lembrar que quando as balas começam a voar, só o que se tem para sobreviver é a pessoa ao seu lado. A irmandade dos guerreiros é forjada no calor da batalha.

Benjamin e Gael se entreolharam com uma expressão risonha, enquanto Noah, não desejoso de mais um déjà vu amador, decidiu interromper antes que a situação escalasse:

— Senhores! Queiram tomar assento, por favor – indicando o sofá.

O encarregado caminhou por entre eles, passando a mão pelos fartos cabelos encaracolados enquanto expirava forte em um tom de indignação, como quem pensa “Meu Deus”. Atravessou a sala até a larga janela e continuou o diálogo enquanto puxava as ruidosas cortinas:

— Agente Pochart, o senhor como operativo da CIA deveria muito bem saber que em terras estrangeiras, menos é mais. Mas fecharei as cortinas se isso o faz sentir-se mais confortável.

Por sobre a mesa, podia-se notar um amontoado de papeis cobertos por uma capa com tarjas vermelhas e a inscrição “SECRETO”. Após circundá-la, Noah apanhou os papeis e recostou-se no móvel, fazendo um leve barulho de madeira arrastando. Enquanto ele folheava os documentos, os demais participantes, interrompidos em suas apresentações, faziam uma quietude sepulcral. Apenas o barulho da insistente garoa lá fora, e ocasionalmente, dos pneus de um ou outro carro cortando o asfalto molhado, quebravam a silêncio.

– Rapazes, podem checar o perímetro por gentileza? – disse Noah, se dirigindo aos seguranças.

Os homens assentiram e Gael saiu rumo à rua pelo hall, enquanto Benjamin subiu as escadas para o segundo andar do prédio. Assim que estavam fora de vista, o agente girou o tronco em seu eixo e apanhou um controle remoto, apertando-o em direção ao televisor que se encontrava acima da lareira. O aparelho pedia uma senha, que foi prontamente digitada por ele no controle, revelando um plano de fundo com o logotipo da Blackwater. Recorrentemente, apertava o controle fazendo o aparelho apresentar alguns dados e fotografias.

— Ok! Vamos ao que interessa! Duas semanas atrás o Estado Islâmico assumiu e publicou a execução de John Günderson, auxiliar do embaixador americano no Oriente Médio. Fontes no Mossad identificaram que os terroristas também têm sob custódia o Monsenhor Lucius Archer, que estava em missão humanitária com refugiados sírios quando foi dado como desaparecido há 9 dias.

Televisor:

— Temendo as repercussões que uma operação militar poderia causar, o governo americano nos contratou para resgatá-lo em discrição; portanto, Eduardo está certo quando diz que esta é uma operação clandestina, e caso a presença de algum de vocês for comprometida, não haverá qualquer auxílio e a agência negará qualquer conhecimento de suas ações. É válido lembrar que o alvo é uma grande personalidade, tanto por seus feitos à frente da diocese de Nova York, quanto internacionalmente e haverá uma grande comoção se ele for assassinado.

O encarregado faz uma breve pausa na fala e joga os documentos de volta na mesa, fazendo com que deslizem um pouco como cartas de baralho novo. Apoiando-se com as mãos na quina da mesa, se levanta e caminha até abaixo do televisor que, no momento exibia a imagem de Lucius. Com mais um clique, um mapa de determinada região síria com anotações é exposto, e ele retoma seu discurso.

Mapa:

— Nosso trabalho aqui é atravessá-los pela fronteira e levá-los em segurança até nosso posto avançado em uma fazenda nas proximidades de Ithriyah – disse apontando a cidade no mapa – De lá, vocês deverão seguir até Resafa onde permanecerão em outra casa segura, mas não pela Rota 42, haja vista que ela é intensamente patrulhada pelo ISIS e isso poderia revelar nosso ponto de apoio na região. Uma escolta levará vocês por estradas secundárias até As Sukhnah, passando por Al-Kawm até Resafa – acompanhava o caminho com o indicador enquanto falava – Uma vez no destino, lhe serão dadas maiores informações. Perguntas?

Casa Segura da Blackwater
Arredores de Haifa, Israel
Agosto de 2016 – 18h22min

Quando as manifestações começaram, Noah agradeceu a D'us por conseguir a atenção dos agentes. Não tiveram nenhuma dúvida sobre o translado até Ithriyah, o que era bom, pois era a única responsabilidade que tinha com aquela equipe no mínimo... peculiar!

Eduardo, que parecia finalmente ter entendido como faziam as coisas por ali, não tinha dúvidas. Logo após, Sarah fez uma pergunta que foi prontamente respondida:

— Nossa responsabilidade aqui, senhorita Sarah, é atravessar vocês em segurança até o território Sírio. Outros detalhes, serão fornecidos no destino – o encarregado fez uma breve pausa, pensativo – Entretanto, se vocês vão ficar em Resafa, nosso principal ponto de apoio é uma cidade à frente, em Alhora, onde possuímos uma empresa petrolífera de fachada. Se uma nova identidade for necessária, certamente será algo envolvendo essa empresa – concluiu com um sorriso.

Lacerda parecia tenso, seu comportamento atraiu o olhar do anfitrião do grupo e foi quando ele disparou nervosamente sua dúvida:

Lacerda escreveu:Eu tenho uma pequena dúvida, então nós não vamos poder entrar atirando em todo mundo?

O agente esboçou um riso, achando engraçada a pergunta do ex-policial. Da forma mais amigável que pode, tratou de tentar deixar o homem mais à vontade:

— Ora, meu caro Lacerda! Aqui é o Oriente Médio! As pessoas estão sempre atirando umas nas outras... contanto que não causem um desastre internacional, é óbvio que cedo ou tarde, terão que se valer de armas para se defenderem – sorriu naquele momento, mas assumiu uma expressão mais séria ao concluir – E lembre-se de guardar a última bala para você! Confie em mim quando digo que vai preferir estar morto a ser capturado por eles!

As últimas palavras de Noah causaram um calafrio em Sarah, ao fazerem-na se lembrar das duas ocasiões em que fora presa e torturada por terroristas. De fato, a morte era uma alternativa muito mais humana.

— Senhores, senhoras, se vocês não possuem mais nenhuma dúvida, deixe-me servir o jantar. Vocês devem estar famintos! Caso queiram guardar suas malas ou tomar um banho, os quartos são lá em cima, logo após a escada. Estarei na cozinha preparando o Kreplach com Klops.