O Suscitar

- Que merda é essa... – murmuro, quando finalmente me vejo livre o suficiente pra me mover minimamente. A pouca luz não é suficiente para que eu veja tudo... Mas a cicatriz chama atenção. Passo os dedos por ali, a acompanhando até onde a túnica permitia. Depois ergo a vestimenta um pouco pra ver onde terminava.

- Que lugar é esse? – continuava falando comigo mesma, talvez pra manter minha própria sanidade. Continuo puxando as faixas pra livrar as pernas, tentando não fazer muito barulho... Mas, talvez por minha respiração ser o único ponto de referência audível, ela parecia alta demais nos meus ouvidos...

Ao sentar, senti o peso da joia que estava apoiada em meu peito. Toquei nela, curiosa... Mas tinham coisas mais urgentes no momento.

Caso conseguisse retirar as faixas todas, tentaria por os pés no chão e me levantar... Pra tentar espiar pela porta logo ali na frente.

Ando um pouco encolhida, com medo de ter alguma parte do teto mais baixa. A joia está na minha mão direita e a esquerda uso pra me guiar até a porta, apoiando na parede mais próxima. Ao abrir a porta, soltei um grito involuntário, tanto pela altura quanto pelo vento frio.

- Merda – segurei a túnica, tentando não olhar pra baixo. Quem fazia uma porta pra morte assim? Quem fazia escadas como aquela, sem apoio? Dei dois passos pra trás, segurando a porta pra ela não fechar, precisando ponderar sore o que fazer.

Ir pra floresta escura e estranha ou Ir para o cume, com risco de rolar aquela escada estranha?

- As duas escadas vão me matar... Merda... Melhor tentar ver onde eu tô, né? – conversava comigo mesma e respondi assentindo. Peguei uma das faixas que me amarrava pra prender a túnica, impedindo que ela subisse com o vento, amarrando ela nas coxas e depois na cintura, (tipo um cinto de rapel). Coloquei a joia dentro dela, de forma que não caísse também.

E rumei pra escada esquisita da direita, que ia para o topo. Tentei usar as mãos pra me dar apoio nos degraus da frente, já que era estreita e ventava demais. Torcia pra escada não desmoronar com ela.

Não conseguia conter as minhas lágrimas e alguns gritos pelo medo que aquele trajeto trazia. Por vezes, pensava que ia cair daquela altura... Ou que ia escorregar e bater a cabeça e agonizar em algum degrau daquele até morrer.

- Cadê o topo desse cume – repeti algumas vezes pelo caminho, sentindo minhas mãos e pés cada vez mais gelados e difíceis de controlar.

Quando vi o gato, achei estranho. O que um bicho tão pequeno tava fazendo ali?

Fui me aproximando com calma, com medo dele se assustar e atacar.

- Pspsps – tentei chamar, pra fazer ele subir junto. Ele tava no caminho,  tinha medo dele tentar descer e se machucar, ou pior... De me derrubar. – Vamo gatinho... – caso ele não se mexesse, testaria passar por ele... com cuidado

- AI CARALHO! - o grito sai da minha boca sem eu nem perceber. Me agarrei nas escadas da melhor maneira que consegui, olhando o gato sumir na direção oposta. Será que ele era de alguém? Ou vivia sozinho naquele meio do nada?

Bem, agora não importava. Precisava continuar o meu caminho.

Quando cheguei no topo, ver aquela casinha foi um alívio. Não me lembrava muito bem de onde eu vivia antes dessa merda toda, mas aquela parecia uma casinha bem mais normal que aquele quarto apertado. Comecei a andar em direção à construção, parando um momento pra olhar em volta. Queria saber onde eu estava e procurar um caminho pra seguir ao descer.

Após isso, fui andando em direção à casa, com a intenção de bater na porta.

-Olá?

A medida que avisto melhor as pessoas que, aparentemente, moram naquela casa, vou diminuindo o passo, não querendo parecer invasiva. As mãos envolvendo os braços, ainda pelo frio, o corpo levemente encolhido. Sorrio quando estamos os três frente a frente.

- Eu... – preciso pensar. Estou perdida? – Não tenho certeza, senhor. Onde nós estamos? – pergunto, talvez um nome ajudasse minha memória a funcionar. Falando em nome... Qual é o meu?

Observo a senhora, assentindo – Muito obrigada, estou congelando – digo, deixando ela perceber que a entendo. – O gato preto é de vocês? Tentei trazer ele pra cima, mas ele saiu correndo de mim...

Será que era isso que o senhor procurava?

De toda forma, aceitei o convite, ansiando por um fogo pra me aquecer... E a fome eu ainda não sabia se sentia. Andar naquela escada perigosa tinha deixado meu corpo em modo de alerta, as necessidades ficando em segundo lugar.

Olho o senhor ir em direção à escada, segurando o bastão daquela forma e fico um pouco assustada. Olho pra senhora, quando ela me abraça, e falo, preocupada - O gato não parecia perigoso... O seu marido não vai fazer mal a ele, vai? - pergunto, com medo de ter colocado o bichinho em perigo.

Apesar disso, deixo ela me guiar pra dentro. Já nem sentia direito minhas pernas e braços com aquela ventania toda.

- É, acho que não... Não me lembro de nos conhecermos... Mas obrigada, de toda forma - sorriu, entrando com a velha na casa. - Onde nós estamos?

Percebi a hesitação da senhora, mas não insisto naquele assunto. De toda forma, não ser quem a mulher pensava parecia algo bom naquele momento. Enquanto não sabia quem era, era melhor não ser algo que desagradava as únicas pessoas que encontrei.

Agradeci novamente quando ela falou das roupas, também não perguntando sobre a filha... Era melhor evitar assuntos desagradáveis. Ao chegar no quarto, estranhei a falta das portas. Não gostava da ideia de me trocar sem privacidade, por isso, dei uma olhada se o banheiro tinha portas... E não, não tinha. Que velhos estranhos...

Por fim, fui até o armário e peguei uma calça e uma blusa de frio pra vestir, levando as roupas comigo até um canto do quarto, na parede da porta, pra sair do campo de visão de quem tava de fora (ou pelo menos o máximo que eu conseguisse). Desamarrei o "cinto" improvisado e peguei a joia, olhando ela melhor na claridade. Enfiei as calças sem tirar a túnica e o coloquei o besouro dentro de um dos bolsos. Depois vesti a blusa de frio, agradecida por estar aquecida em muito tempo.

Dei uma olhada pelo quarto, procurando principalmente algo como um calendário ou qualquer coisa que me situasse no espaço/tempo. Procurei também um espelho, querendo ver meu próprio rosto.

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Já ia sair, mas hesitei. Aproximei o rosto devagarinho do batente, tentando ver discretamente o que acontecia na casa.

O cheiro da carne me pegou de jeito, quando espiei pra fora do quarto. Se eu não tinha certeza se estava com fome antes, agora, eu estava mais que certa. Pousei a mão na barriga, terminando de ajeitar a roupa em seguida e saindo, indo até a cozinha.

- Obrigada - disse, ao ser servida, assoprando o líquido de leve antes de comer. Tentei conter a expressão de surpresa com a agressividade dos temperos e do sal, dando mais uma colherada, deixando o meu paladar se acostumar com o sabor.

-Moram só a senhora e seu marido aqui nas proximidades? - tentou puxar assunto, enquanto comia. Precisava saber o que faria ao sair dali.