Perdido em Terra Firme

Gabriel acordou num sobressalto. Uma das mãos foi instintivamente para o alto e depois para baixo, como se estivesse nadando. A outra agarrava o colchão de palha com força. O lugar aonde Gabriel estava balançava como se o marujo estivesse em alto mar, mas foi fácil reconhecer o solavanco causado por um buraco da estrada por onde a carroça seguia. O colchão estava colocado no chão, ao lado de dois baús simples e uma estante cheia de pequenos sacos e caixas. Do teto pendiam carnes defumadas, queijos e um chifre de pólvora. A carroça era estreita, mas havia uma janela por onde ar puro entrava e isso ajudava a tornar o lugar menos desconfortável. O que realmente incomodava era o calor sufocante, Gabriel estava com o rosto coberto de suor e sua camisa de linho estava grudada no peito úmido. Depois de alguns instantes, o marinheiro percebeu duas vozes abafadas em uma conversa.

- … conseguiremos fazer nada até sairmos dessa caravana – A voz era aguda, ligeira e um pouco anasalada.
- Sim, mas só teremos chance disso no Vau. Agora fica quieto ou fala de outra coisa – A segunda voz era mais grave, um pouco rouca. Depois disso a conversa seguiu para alguma batalha que aconteceria em breve e o envolvimento da cidade de Águas Profundas nela.

Gabriel, que já estava um tanto desorientado, ficou completamente perdido. O theskiano já tinha ouvido falar sobre Águas Profundas, mas ela ficava à centenas de quilômetros de distância do Mar das Estrelas Cadentes, depois da Terra dos Vales, Cormyr e além. Onde o marinheiro estava? A última coisa de que Gabriel se lembrava era Umberlee tomando para si o barco do Capitão Cutler e de sobreviver graças à uma tábua de madeira. Blackwood tinha vislumbres vagos de ter sido retirado do mar, mas não lembrava de mais nada depois disso até o momento em que acordou nesta carroça.

Gabriel estava realmente perdido não sabia como havia chegado até aqui, mas era melhor do que a outra prerrogativa num inferno marítimo a mercê de coisas inimagináveis e o pensamento o fez persignar-se num gesto de como para afastar nefastos pensamentos.

Não estava amarrado e isso já era uma boa coisa, pois não era tido como prisioneiro então talvez fosse bom se anunciar consciente e agradecer as pessoas que podem ter-lhe salvo ou então ao menos contribuindo um pouco para isso.

- Olá? Com licença cavalheiros queria agradecer e bem saber onde estou? - O theskiano percebera que estava desarmado e sem equipamentos, mas o que fazer? Óbvio que se o quisessem morto nem teria recobrado a consciência. É hora de bancar o bom sujeito e ver o que descubro pensou ele.

Os dois homens pararam de conversar assim que ouviram a voz de Gabriel. O desconforto com a situação foi palpável, mas ele durou pouco. A voz aguda surgiu pelo tecido que cobria a porta.

- Bom saber que você tá vivo, rapaz! Sai dessa carroça quente, vem aqui fora, o dia tá bonito.

O theskiano faz o que pediram, sem ter muita escolha, e confirma o que lhe disseram. O sol estava forte e quente, intensificando as cores de tudo ao redor, assim como o calor, mas uma brisa leve equilibrava as coisas. Gabriel viu que estava em uma caravana com cerca de oito carroças e a que dormia seguia viagem no centro do comboio. O homem da voz aguda não era um homem, mas sim um gnomo de nariz grande e adunco, orelhas finas e pontiagudas e cabelo preto e desgrenhado que caia sobre o rosto branca e liso. A voz grave pertencia a um homem duas vezes maior do que Gabriel, mas ele deveria ter pouquíssima gordura em seu corpo. Os braços eram fortes e bem definidos, assim como o resto do corpo. A cabeça contrastava com o rosto barbudo e os olhos escuros olhavam Gabriel com uma desconfiança irritada. A pele negra do homem brilhava, refletindo a luz do sol, e o marinheiro não conseguiu esconder a expressão de surpresa ao vê-lo. Era a primeira vez que Gabriel via homem de Zakhara. Ficou claro que o homem não gostou dos olhares surpresos do theskiano e o gnomo interviu antes que aquilo pudesse se tornar para algo pior.

- Meu nome é Phenis D'on Pelvis, ilusionista amador, comerciante por profissão e trambiqueiro por vocação - Phenis riu - Este homem com cara de poucos amigos é Zahir Nahhas, da distante Zakhara, mas acho que você já notou. Depois que eu conheci Zahir, eu consegui um livro sobre etimologia dos nomes de Zakhara no Forte da Vela, numa das vezes em que precisamos dormir lá, e descobri que o nome dele significa 'protetor'. Não espere esse tipo de coisa desse Zahir aqui. Phenis riu de novo, alto e espalhafatoso.

O zakharano não riu, não retrucou, não olhou para o gnomo. Apenas andava olhando a estrada e o comboio com sua expressão irritada e a mão esquerda sobre o falcione que ele levava à cintura. Phenis continuou.

- Algum deus deve gostar de você garoto, foi muita sorte termos te encontrado. Nós paramos pra acampar, já tava anoitecendo, e enquanto descarregávamos as coisas, um dos mercenários te encontrou caído entre alguns arbustos. Você tava respirando muito mal, sujo feito cachorro e pálido. A esposa do Lasar cuidou de te dar comida e te limpou. Você acordou pra comer, mas não disse coisa com coisa e logo depois desmaiou de novo. Você tá dormindo com as pulgas do colchão já faz dois dias.

- Dois dias dormindo nossa tudo isso? E acho que tem razão senhor hun... hun Phenis? A boa sorte me sorriu se ainda estou aqui, só por curiosidade onde é que vocês me encontraram para ser exato? - Diz Gabriel tentando não deixar o grandalhão irritado e sendo o mais cortês que possível dentro de seus limites.

O gnomo olha para Gabriel com o canto dos olhos, sem virar a cabeça.

- Te encontramos nas margens da Floresta Ardeep - Phenis olha para Zahir e depois para o marinheiro novamente - Você não sabe aonde tá?

- Francamente? Eu não fazia a mínima ideia - Diz Gabriel se esforçando para sorrir, afinal tinha estado apagado por dois dias, mas não dois dias não era o suficiente para estar tão longe de onde ele estava anteriormente.

Blackwood não esboçava movimento e bem continuou a conversa. - Mas onde estão os meus bons modos? Desculpe-me meu nome é Blackwood, Gabriel Blackwood e bem estou realmente bem longe de onde eu me lembrava. - Ele esforçou-se para manter a compostura, mas estava bem surpreso.

- Para onde vocês estão indo?  Tipo não que eu tenha melhores coisas a fazer e estou muito feliz de estar aqui e não lá, mas a curiosidade me venceu. -

- Estamos indo para o sul, mas passaremos pelo Vau da Adaga, Portal de Baldur e algumas outras cidades no caminho - Dessa vez Phenis falava sem tirar os olhos da estrada - Somos mercadores, como você deve ter notado.

Os três ficaram em silêncio por um instante - na verdade dois, já que Zahir havia parado de falar assim que Blackwood entrou na conversa - mas Phenis logo tornou a falar.

- De onde você é Blackwood? Fiquei curioso sobre isso desde que te achamos desacordado, mas agora só fiquei com ela mais atiçada, pois eu tenho um palpite que você é de longe, muito longe.

- Bom eu venho de Thesk, mas falando sério a última coisa de que lembro foi quando o Fúria do Oceano foi a pique e de me jogar ao mar com um pedaço da quilha, mas isso era no mar das estrelas... já se passaram dois dias e bem acordo aqui isso sim é que uma história com lacunas, mas estou muito feliz de estar em terra firme agora. - Diz Gabriel com um movimento de mãos para aliviar o formigamento. - Com certeza ao menos não tenho que me preocupar com tubarões ou coisas piores agora hehehe. - Diz com um riso forçado, pois estava ainda muito preocupado.

- Algumas pessoas são piores que tubarão, garoto - A voz de Zahir era grave e profunda, parecia vir de outro lugar que não fosse ele próprio e um arrepio inconsciente tomou Gabriel. O zakharano disse as palavras sem mover um músculo que fosse e parecia não se importar se o desconhecido de Thesk fosse responder ou não. Phenis continuou, e até o gnomo parecia desconcertado.

- Esse... Esse Fúria do Oceano era o seu navio? Você parece muito novo para ter sido o capitão de uma embarcação, então vou assumir que era um membro da tripulação. Um primo meu, que mora em Lantan, é louco o suficiente para se aventurar no mar. Bah! - Phenis treme - Se uma tempestade começar agora, nós paramos e nos abrigamos. Agora uma tempestade em alto mar... Bem, poderíamos acabar como você.

Phenis fica em silêncio, ruminando a ideia de uma tempestade em alto mar e Zahir poderia ser confundido com uma estátua de ébano se ele não estivesse andando. O gnomo mudou o assunto para afastar da mente a imagem que ele mesmo formou.

- O que pretende fazer agora, Theskiano? Te chamarei assim, tem mais força. Vai voltar para casa ou aproveitar a chance e conhecer terras novas?

- Zahir, brincadeiras a parte depois do que vi e passei eu agora também acredito nisso, ao menos o tubarão é honesto a maneira dele. - Responde Gabriel concordando com o que ouvira.

- É tempestade... - Blackwood se interrompeu. Ele podia contar o resto da sua história, mas talvez fosse cedo para isso então deixou a teoria do gnomo como certa e continuou a falar. - Eu saí de casa justamente para partir em aventura e ainda é cedo para voltar, quem sabe ficar em terra firme por uns tempos. Talvez arranjar um grupo e partir em busca de fortuna. - Diz com sinceridade e com um sorriso forçado, afinal marinheiros não são conhecidos por gostarem de ficar fora dos mares por muito tempo.

- Bem devo ir onde a aventura me chamar e bem tentarei evitar que os problemas me achem. Que falta faz um bom copo de rum agora. -

Zahir ouve o que Gabriel disse, mas o ignora por completo. Blackwood não compreendia como o zakharano se comportava; ele parecia ser uma pessoa difícil, mas ao menos ele ficava quieto com os seus pensamentos. Phenis, ao contrário, abria a boca e não parava de falar.

- O que você disse me lembrou meus dias de juventude, quando eu mesmo saí de casa em busca de aventura! O ano era 1295, eu ainda cheiraVA à leite e fraldas sujas, mas resolvi que a casa dos meus pais não era mais lugar para mim! Juntei as moedas que tinha conseguido fur... Com o meu trabalho na feira e viajei Faerûn da Espinha do Mundo até aquela selva pestilenta que é Chult. Tive muitas aventuras, quase morri uma dezena de vezes e aproveitei bastante o ouro que ganhei, mas tudo acabou quando meu primo Fibbert me encontrou depois de muitos meses me procurando para avisar que minha mãe estava doente - Phenis agora soou baixo e monocórdico, e assim seguiu - Voltei para casa, mas mamãe infelizmente morreu três meses antes de eu voltar para casa. Claro que meu primo Fibbert ficou furioso comigo, ele gostava muito de mamãe e por causa de mim ele perdeu o funeral. Disseram que foi muito bonito, meu tio Talbbert ficou bêbado e fez um discurso. Ele, ao contrário do meu primo Fibbert, filho de Tio Talbbert, nunca gostou de mamãe, então você consegue imaginar como foi o discurso. Mas não era isso o que eu queria lhe dizer - A voz aguda do gnomo soou animada novamente - Se você pretende se aventurar, aconselho que vá até o Vau da Adaga. A cidade fica entre Portal de Baldur e Águas Profundas, é uma rota certa de trabalho para aventureiros.

Gabriel esperou alguns segundos e depois teve certeza de que Phenis tinha parado de falar.

O grandão não respondeu e Gabriel pensa que é melhor deixar Zahir falar quando ele quiser já Phenis precisa ser interrompido em quanto antes. O marinheiro pensou em sua bolsa de moedas e via que a mesma estava bem leve, afinal só seria pago depois da viagem e sendo que seu empregador estava no fundo do oceano sua perspectiva de receber tornara-se nula.  Sentiu-se entretanto aliviado que o que deixara de ganhar não era nada em comparação do que poderia vir a ter que pagar, ajeitou-se e olhou para gnomo e via que o mesmo parece ter uma inesgotável de fonte de energia já que falava sem cessar, mas aproveitando-se de uma brecha que o mesmo deixou ele responde.

- Estou tão livre quanto poderia estar mestre Phenis só que com o fim prematuro de meu empregador minha perspectiva de receber pagamento tornou-se nula e bolsa de moedas sofre, mas tem razão existe trabalho onde se menos espera. Mas eu confesso que gostaria de poder ajudar vocês em alguma coisa e não ser um fardo, afinal de contas seria uma grande falta de educação e ingratidão de minha parte ficar apenas sentado, mas claro ajudarei no que puder dentro das minhas possibilidades. - Blackwood era sincero e bem no momento estava sem emprego.

Phenis olhou para Zahir depois que o marinheiro se ofereceu para ajudá-los. Nada de anormal, já que o gnomo olhava frequentemente para o zankharano. O que chamou a atenção de Blackwood foi que Zahir não ignorou o olhar como das outras vezes - isso se Zahir realmente tinha ignorado das outras vezes. Movendo muito pouco a cabeça de maneira muito sutil, o grande homem negro olhou para o gnomo com o canto dos olhos, para frente e novamente para o gnomo. Tudo aconteceu muito rápido, se Gabriel tivesse demora um segundo a mais ao olhar para o zankharano, não teria visto a comunicação entre os dois. Phenis não esboçou qualquer sinal de que houve essa troca de olhares e respondeu Gabriel com seu tom habitual.

- Sinto por você ter perdido o seu pagamento, Gabriel, mas não temos trabalho para você - Phenis olhava para o marinheiro enquanto falava, mas depois voltou-se para a frente e apontou para alguma coisa três carroças à frente - Entretanto, talvez você consiga algo com aquela garota ruiva. Ela conseguiu o cavalo de Horian e pelo jeito com que arrumou suas coisas e como conversa com aquele halfling trapaceiro, pretende que notem a sua partida apenas quando estiver sobre o cavalo. Se eu estivesse em seu lugar, tentaria as graças de Tymora com ela.

- Uma pena meu caro Phenis, mas compreendo a decisão embora deseje aventura não quero começa-la correndo no meio da noite, afinal parece suspeito o comportamento da moça em questão e se a mesma envolve-se com notório trapaceiro já que o mesmo possui tal alcunha e no fim das contas esta caravana esta indo para cidade não é mesmo? De lá poderei ter mais opções de contratantes e confesso que sinto-me mais seguro entre vários numa caravana do que na garupa de um cavalo saltitante mesmo que seja na companhia de uma bela moça. - Se Gabriel notou a troca de olhares entre o homem alto e o gnomo não se pronunciou a esse respeito.