A Passagem de Gherlen

Ao ver Piper aproximar-se para ajudá-lo, o homem gesticula veementemente com a cabeça.

- Não! - grita, ou o mais próximo de um grito que consegue alcançar em seu estado decadente - Não se aproxime. Eu fui maculado pelas crias das trevas. Eu vou... Vou morrer logo. Mas você não pode ser infectada.

Lentamente, o homem consegue fazer um esforço e ficar sentado em um dos degraus, respirando pesadamente. Ergue novamente o olhar para Piper, e seus olhos completamente negros subitamente se arregalam.

- Pelo Criador... Eu lhe conheço, Senhorita Arellano - diz, surpreso, e com a voz quase inaudível - Eu sou um soldado de seu pai.

Antes que possa dizer mais qualquer coisa, entretanto, é acometido por uma crise de tosse. Espasmos involuntários percorrem os seus membros acinzentados. De fato, o homem parece à beira da morte.

off:

O homem demora alguns momentos para responder à pergunta. Seu olhar está perdido; é como se sua alma já começasse a vagar por planos imateriais. Mas um ataque de tosse acomete-o novamente, devolvendo vida aos seus olhos totalmente escurecidos.

- Fomos enviados... Fomos investigar... - o homem respira fundo, tentando recuperar o fôlego - Crias... Valeanos... Terríveis, terríveis... - lamenta-se, balançando a cabeça, enquanto lágrimas surgem nos seus olhos.

- Seu pai... Levado... As Sepulturas... Sepulturas de Esmeralda - consegue dizer, antes de ser completamente dominado pela tosse. Gotas de sangue negro expelidas por ele mancham a pedra da Estrada Imperial.

Foi o último acesso. O pobre homem desmonta de vez, a vitalidade esvaindo de seu corpo flácido. Piper está novamente sozinha na Estrada, agora diante de um cadáver semi-apodrecido por aquela estranha enfermidade.

off:

Resoluta, Piper deixa para trás o cadáver daquele soldado, seguindo seu caminho em direção a Orlais. Seus passos decididos ecoam na pedra da deserta Estrada Imperial.

Decorreram alguns dias de viagem sem muitas surpresas dignas de nota. À noite, dormia em estalagens precárias ou ao relento. Muito diferente da vida de nobre com a qual estava acostumada.

Mas, agora, seus pés já pisam em terras orlesianas. A majestosa Estrada Imperial segue inflexível em direção a oeste, até terras muito, muito distantes. Mas a jornada de Piper sobre ela está chegando ao fim.

À sua direita, escadarias descem e seguem ao norte em uma estrada razoavelmente regular. Uma placa desgastada e quase ilegível indica que é o caminho para a cidade de Jader. Seria o caminho óbvio para quem deseja visitar Orlais, já que, de lá, é possível pegar uma embarcação até Val Royeaux, a capital do Império.

Essa direção, entretanto, é oposta ao destino da guerreira. Por mais que não saiba a localização exata das Sepulturas de Esmeralda, lembra-se que são ao sul da Estrada Imperial, e não ao norte. E, de fato, há, um pouco mais à frente, uma rampa mais ou menos inteira que sai ao sul. Resta saber se é melhor descer ali ou ainda permanecer por mais um tempo caminhando na Estrada.

Como que respondendo suas indagações mentais, surge nada menos que um chevalier, acompanhado de um punhado de soldados, vindo em direção a Piper. Sua máscara elaborada brilha junto com sua impecavelmente polida armadura de aço e a afiada ponta da lança que traz na mão. Quase tão brilhoso quanto é o branco pelo do cavalo que monta, de peito forte e galope constante. Talvez o cavalheiro saiba informar-lhe o caminho.

off:

Ao perceber a aproximação de Piper, o chevalier ergue a mão, gesticulando para que os soldados que o acompanham parem. Ele próprio para, e abaixa o olhar para a guerreira que se aproxima. Com o rosto completamente coberto pela máscara, é impossível dizer sua expressão.

O nobre acena com a cabeça quando Piper identifica-se, e se ajeita em seu cavalo, aparentemente incomodado.

- Ora, ora, o que faz uma nobre da Terra dos Cães por aqui? - indaga, a voz abafada pela máscara. Sem ver seu rosto é difícil definir a intenção da pergunta - Sou um chevalier e tenho pressa. Diga-me o que fazes aqui e o que queres, e te direi se poderei ajudar-te.

off:

O homem fica em silêncio por alguns momentos. Sua cabeça, levemente inclinada, como se refletisse. Por fim, sua voz abafada ressurge de trás da máscara:

- Em nome do Rei, hum? Hum... - resmunga, pensativo; enfim, suspira - Bem, não me importo se estás sendo verdadeira ou não. Uma mulher sozinha não causará prejuízos ao Império de Orlais.

Alguns dos guerreiros, não importantes o suficiente para usarem máscaras, exibem sorrisinhos debochados diante da ironia do chevalier.

- Em circunstâncias normais, a senhorita poderia seguir em frente por mais uma hora pela Estrada, antes de sair à esquerda e seguir em linha reta - explica o cavaleiro - Mas não estamos em circunstâncias normais, e a Estrada está bloqueada mais à frente por soldados do verdadeiro Imperiador de Orlais, Sua Majestade Gaspard de Chalons - seu peito estufa ligeiramente enquanto pronuncia o nome de seu líder - Se desejas seguir nesta empreitada, deves sair aqui mesmo ao sul, e seguir em direção sudoeste até alcançar vosso destino.

Subitamente, e sem se despedir, o nobre agita as rédeas de seu cavalo, e retoma sua marcha. Os guerreiros contornam Piper; a Estrada é larga o suficiente para isso.

Pelo menos, agora tem uma ideia de como alcançar as Sepulturas. Poderá seguir de imediato o caminho, saindo ao sul, ou ir, antes, para Jader, saindo ao norte.