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    Mensagem por Wordspinner Dom Jun 27, 2021 4:48 am

    É tão curioso ter você aqui nas minhas memórias junto comigo e logo aqui nessa de todas as outras. Por que? Traição? É isso que você quer ver e acha que eu não tenho escolha? É o que você quer, me arrastar nisso de novo? Depois não diga que eu sou um anfitrião impositivo.

    O cheiro dela é quase mágico, não é? E eu entendo de cheiros. Emoldurada pela luz da lua na janela, a pele refletindo o brilho claro marcada pelos cabelos pretos e cacheados. Marcada pelas finas linhas escuras da sua roupa provocante. Os olhos cor de mel e o rosto inocente vestindo uma expressão predatória. Não a via a anos. Bonita como a morte, ela me faz reavaliar minha vida toda. Ela não mudou nada nesses anos todos, nada. Eu que me sinto congelado no tempo quando olho outras pessoas a vejo e percebo que o tempo passou rápido demais. “Não achei que ia conseguir me encontrar. Eu fui muito discreto.” Não fui, mas aposto que ela teve trabalho para me achar. Um bom jogo de detetive e ela chega aqui se sentindo mais forte. Não é um presente, é uma conquista.

    Ela fica olhando para mim, ela demora a se mover. A agir. O sorriso afiado lentamente ganhando o rosto. A última vez que ela pôs os olhos em mim eu era um adolescente. Eu era um dos lobos que ela arrancou da solidão para beber suas palavras como mel. Não precisa me lembrar que a gente brigou e ela prometeu me matar se eu voltasse. Ela se move com graça e não anda direto para mim, ela anda na direção da cama extravagante com dossel. Ela não se rende a essas afetações, mas era parte da sua vida antes, agora? Agora ela finge que isso não tem nenhum poder sobre ela como ela finge que não quer me tocar.

    O cheiro doce dela, ela de se esperar que fosse diferente, mas é doce com mel e morangos selvagens. Eu quebro o silêncio que ela estende entre nós. "Eu sonhei com você." Minhas mãos longe dela, doendo de afastamento. Era mentira, os dois sabiam. "Sempre penso em você." A voz dela apaixonada. Era mentira, os dois sabiam. Um sorriso verdadeiro e eu já nem lembro mais se alguém disse alguma coisa. Essa é a verdade, não posso mentir aqui. A proxima coisa que eu lembro é o gosto da sua boca.

    Molhada e ferrosa. Dentes perolados com gosto de sangue. Ela morde e me arranha com os dentes, você consegue sentir a dor fria que queima um instante depois? Consegue sentir o gosto dela? As mãos dela descendo pelo meu rosto delicadas e lisas como mármore polido, as unhas deixando rastros quentes na pele? Você sente? Me diz se isso faz você esquecer o resto do mundo e sentir seu coração correr para virilha? Faz o meu. Nem faz diferença quando ela corta a camisa e estoura os botões. Eu não posso descrever o que eu senti quando ela mordeu o meu pescoço, mas eu sei que você sente esse fogo insano que move as minhas mãos para as pernas dela. Voraz. É a melhor palavra para ela.

    As mãos dela não tem a menor paciência com o minha calça ou meu cinto. Ela nem precisa olhar, nem precisa tirar a boca da minha pele para botar meu pau para fora. O que foi? Prefere que eu diga o meu membro rijo? A ereção pulsante que ela agarra com fome? Eu sei falar todas as línguas. Ela desce com a língua pela minha barriga e só puxa as rúinas da minha calça italiana para fora quando me enfia na boca. Os dentes dela arranham e não é sem querer. Ela quer causar dor e sabe que eu não vou sair. Era nosso jogo. Nunca recuar. Ela me lambe em um circulo ágil e suave. Seda vermelha me apertando dentro daquela boquinha pequena demais para o trabalho. Ela não desistir, você sabe, não é? Ela vai continuar descendo. Você acha tão excitante quanto eu? Ver ela me engolindo centímetro por centímetro sem mostrar nenhum desconforto. Aqueles olhos na minha cara, me fixando no lugar como lanças. Mais um pouco. Mais fundo. Mais apertado. Mais dentro da garganta. Mais e mais e mais.

    Os lábios dela finalmente tocam a minha virilha como se eu fosse alguma espécie de eunuco. Ela consegue fazer uma cara inocente e porra como é maravilhoso sentir ela me apertando, linda como uma estátua renascentista. Você vai odiar essa parte, vai me fazer parecer um escroto, mas saiba que foi por ela. Eu aperto a cabeça e enfio meus dedos nos seus cachos e a puxo mais sentindo os dentes dela na minha carne. Ela me aperta com as unhas marcando a minhas pernas. Minha pelvis me empurrando para dentro dela e os dentes rasgando a minha pele. Ela gosta. Ela adora o sangue. Ela é uma dominadora, mas quer alguém forte o bastante para usá-la como ela nunca permitira ser tratada.

    Eu puxo ela e a aperto de novo. Uma, duas dez vezes. Ela não mostra nenhum desconforto, mas sinto o cheiro da excitação dela. Ela me aperta forte, a dor era um desafio. "Você é melhor assim, quieta." Ela imediatamente luta para fugir, um jogo. Nosso jogo. Eu me forço até ter que decidir entre gozar cedo demais ou deixar ela escapar. Não dá para acreditar que dentro daquele circulo de veludo vermelho eu cabia inteiro. É impossível controlar minha respiração enquanto eu arrasto ela para cima da cama. Arisca. Irritada. As unhas destroem as minhas roupas pedaço por pedaço. Linhas quentes na minha pele suada. É uma satisfação enorme arrancar aquela blusa delicada e quase transparente. A pele branca e lisa exposta, a curva dos seios, os mamilos que pediam a minha boca. Eu queria desesperadamente beijá-la, mas ela nunca ia me perdoar.

    Eu agarro os braços, e diferente do passado eu sou forte o bastante dessa vez. Os dois pulsos em uma só mão. Eu aperto até doer. Aperto enquanto ela tenta se soltar. Aperto com ela me empurrando com as pernas e raspando os lábios molhados em mim ao mesmo tempo. Ela adorava essa luta. Não posso mentir para você, certo? Eu adoro isso também. Ela debaixo de mim pequena e fraca demais para escapar. Excitada demais para escapar.

    --
    Continuo depois...

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    Mensagem por Wordspinner Qui Jul 01, 2021 5:07 am

    Ela não grita. Me prende entre as pernas e aperta com força tentando me impedir de entrar. O lençol, antes perfeitamente esticado, agora era um mar revolto e branco. Um deserto imaculadamente branco. Ela chega com o rosto perto do meu, os dentes tentando encontrar o meu rosto para tirar um pedaço. Eu tenho duas mãos e empurro para baixo de novo pelo pescoço, parece bruto não é? Mas ela não liga muito para respirar. Os braços dela são o que eu uso pra me proteger dos dentes. Dá trabalho passar o braço dela sobre o pescoço e pegar os dois de novo. Ela vê a chance de escapar e torce o corpo me empurrando de novo com as pernas. Ela quase consegue. Uma perna faz força com o pé na minha coxa e a outra escorrega pra longe, mas agora não preciso mais segurar o seu pescoço. Meus dedos descem pra cintura e puxam o tecido delicado da sua roupa junto. A transparência escura marcando as curvas, ela estala quando eu a coloco de novo embaixo de mim. Não me preocupo em virar ela de frente, isso não importa.

    É até melhor, eu seguro ela pelo lado do corpo. Os dedos marcados na pele branca demais. Eu passo uma perna entre as dela ficando com o peso todo em cima da debaixo. Eu aperto com força e empurro o joelho dela para cima. Consegue ver? Ela não tem muito mais como se mover, não é? As pernas separadas o suficiente para você também ver o que eu vejo. Os lábios molhados e tão vermelhos, não rosas, vermelhos como sangue. Os olhos dela cada vez mais suaves, eu não posso perder tempo agora, vê? Se a luta acabar, a graça desaparece. Não posso negar nada a ela essa noite. Você sabe como tudo isso termina, não é? Eu acho que sabe, mas definitivamente você sabe o que acontece agora nesse próximo instante. Eu engancho meu braço por debaixo do joelho onde estava segurando. Ela geme um grunhido de dor e prazer e luta mais um pouco, mas mesmo assim ela se empurra contra mim quando eu me coloco dentro dela com calcinha e tudo. A renda frágil afunda junto comigo machucando os dois.

    É bonito olhando através dos meus olhos, não é? Eu entrando só um pouco e deixando lutar para me colocar para dentro. Ela me engolindo de novo com lábios vermelhos. A bunca tão redonda e firme colada em mim. Ela se move tentando passar o clitóris na minha perna enquanto tenta soltar os braços. Nessa noite eu preciso amá-la como a rainha sombria que ela é. Eu preciso possuí-la como a menina indefesa que ela um dia foi. Você também alcança isso? Meus sentimentos? Meus pensamentos no momento? Ou só a minha voz atrapalhando as lembranças? Minha voz te distraindo enquanto eu fodo aquela mulher… Ela importa para você? Dúvido que seja por ela, esse momento é um fio que pretende puxar, não é? Não importa para onde vá, não tem nada bom aqui.

    É assustador o quão alto eu respiro transando, normalmente sou o mais baixo dos dois. Ou três. Ou… você sabe. Mas ela me aperta entre as pernas, não com as coxas, não de um jeito que você consiga ver. Mas deve sentir. Não sente? A pressão quente esmagando meu pau, apertando meu forte até forçar o limite entre prazer e dor e depois relaxando devagar. O pézinho dela bem do lado do meu rosto, liso como porcelana e não posso lamber, não posso morder. A mão livre aperta os seios sob a malha fina. Eu demoro mais do que o necessário, acredite em mim, nada ali mudou, mas ainda é fascinante. A textura e o peso dos seios, mesmo pequenos, ainda chama todos os sentidos. Os mamilos se fazendo sentir entre os dedos. Arrancar aquilo com um puxão e expor aquele familiar banquete, eu quase me sinto culpado. Quando me inclino para pegar os seios com a boca eu me sinto mais fundo dentro dela, a renda escorrega para o lado me arranhando e eu empurro com mais força.

    Os gemidos dela já não tem nenhuma luta, só entrega, mas ainda é cedo. Eu não posso abandonar a fantasia cruel e sombria que ela adora. Tantos anos para alcançar esse equilíbrio tão eficiente em derreter a mente e o corpo dela e transformar tudo em prazer. Ela merece isso e é por isso que eu a mordi com força, ela fura o lençol com os dedos. A boca aberta e os olhos bem fechados. Só mais um pouco. Mais forte. Mais rápido e ela me acompanha. Minha mão volta para o pescoço dela e aperta e a mulher parece nunca ter estado tão feliz. Ela se move esfregando o corpo em mim, me apertando em ondas rápidas e desesperadas de fome. Qualquer ritmo esquecido nas primeiras investidas do orgasmo. Eu não sei como ela está se sentindo, mas para mim é uma doce tortura. Eu queria dizer que nunca esqueci e nem vou esquecer o quanto ela me ajudou. Queria dizer que sempre penso nela quando tenho medo e estou sozinho no escuro. Queria dizer que sinto muito por tudo no passado. Que sinto muito e que poderia ter sido diferente. Em outra vida teríamos sido perfeitos um para o outro. Em outra vida eu teria impedido o mundo de a ferir. Em outra vida eu não teria que fazer isso.

    Ela grita de prazer e eu a solto. Uma das minhas mãos se agarra entre as nádegas e a outra massageia o clítoris, poderia chamar de sua flor carmesim se fosse do tipo poético, mas não há poesia aqui. Só traição. Porque quando eu finalmente sou exatamente o que ela queria esse tempo todo. A combinação perfeita para forçá-la a flutuar em si mesma. Quando eu finalmente sou a pessoa que a entende melhor que qualquer outro antes disso. Quando o corpo dela para, ou quase já que a mulher ainda treme e se contrai. Nesse momento de fragilidade, ainda sujo com o gozo dela, eu forço meu corpo a mudar. Forço as garras e a força e estranho entendimento de como separar corpos de qualquer vida que os anime e arranco seu coração do peito. O rosto dela não registrou a dor antes de parar, ou talvez tenha confundido com prazer.

    O que fica agora para você assistir é esse coração escuro pingando em um corpo perfeito e inabitado.


    --

    não exatamente o fim, mas até aqui sim.
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    Mensagem por Wordspinner Qui Jul 08, 2021 4:29 am

    Ainda tá aqui?Ainda tá olhando? Porque duvido que consiga sentir o tamanho do desperdício que isso representa. O quanto o mundo diminuiu nesse instante. Quanto dos meus planos, meus delírios ficam diferentes. Não era o que eu queria e isso foi minha decisão. O cálice amargo e sujo do qual eu bebi tantas vezes por puro egoísmo. Não que dessa vez tenha sido isso, que tenha sido egoísta. Talvez tenha sido paternal.

    Não consegui te entediar até ir embora ainda? Você quer mesmo ir mais fundo? Sem nem falar comigo antes? Não posso te impedir disso, mas vamos abrir a próxima porta juntos. Que tal a que leva ao garoto na neve olhando a família que ele perdeu, a que quase destruiu e a que tomou o seu lugar? Não, acho que seja a hora. Você ainda não tá pronto e também não para de lutar e tentar decidir. Vamos…

    Aqui? A noite do dia em que eu nasci de novo? A, eu lembro, você gosta de traições. Talvez eu te arranque daqui depois dessa. Talvez eu… Merda de frio, ainda parecem dentes cavando até os meus ossos. Sentir aquela confusão mental e como os meus sentimentos pareciam tão diferentes. O mundo todo era diferente de um segundo para o outro. A porra toda tinha virado de cabeça para baixo. Eu escapei do reformatório sem nem perceber e tava lá na rua fria.

    Eu acordei antes do sol se por. Ve? As cores mudando nas nuvens e o sol se avermelhando no horizonte. O frio me acordou com uma carícia feita de tremedeiras e sem roupa nenhuma para me proteger. Eram montes de trailers. São montes de trailers, olha em volta. É só olhar e sentir. Sentir a grama molhada e rala na sola dos pés. O chão parecia gelo na pele do garoto de onze anos. As coisas pareciam maiores. Os adultos pareciam maiores.

    Não vou te entediar com detalhes de como eu roubei roupas de varais e não consegui nenhum tênis. Sentir o concreto gelado nos pés e as sombras aumentando. Tentando te alcançar. Tentando devorar o mundo inteiro. As luzes da cidade lutando contra ela. Que cidade? Você não controla tudo que nós vamos ver e dentro da minha cabeça e sinceramente eu nem lembro do caminho e se eu não lembro… Como poderíamos ver isso agora? O que importa é que roubar lanche no colégio é mais fácil que roubar das lojas de uma cidade grande. As pessoas passando. Tão grandes e fortes. Eu comecei esse dia atrás das grades e não queria voltar. Por qual crime? Eu atropelei o namorado da minha mãe com o carro dele e não foi nenhum acidente.

    Tá sentindo isso? O alívio? A sensação de que a fome e o medo vão logo sumir? Um mendigo me ofereceu um lugar ao lado de uma lixeira em chamas. Luxuoso o bastante, não acha? Para quem está com os pés no chão frio era. Pare de fingir que tem pena de mim. Acabou de me ver matar uma mulher e admitir tentativa de homicídio. Para de tentar ter pena de mim, todos os monstros aí fora também sofrem.

    “De verdade?” A voz pequena e assustada.

    “Pode sentar, tem uma fatia de pizza boa ali.” A voz cansada e arrastada. as emoções embotadas pela vida deprimente. Um sorriso com dentes tortos, quebrados, podres e faltando.

    “Valeu.” A gratidão é tão fácil. Tão doce. O medo afrouxando as garras que pareciam heras apertando meu coração. O cheiro ruim e azedo do homem e do beco nem eram tão ruins assim. Não depois da promessa de comida e companhia. A pizza macia e gordurosa, raspada para fora de um prato e meio mordida. Tinha sabores que eu nunca tinha experimentado e nem todos eram ruins, só a maioria. Ele tinha suco de caixinha morno para empurrar. O queijo era até bom e ele me ofereceu sua manta extra para dormir em cima. Sente o sono? Aquele cansaço que nem parecia ter razão de existir? O conforto e o som do fogo. Um adulto me protegendo como poucos dias atrás minha mãe faria.

    O sono é essa escuridão aveludada. Lá no fundo o som de uma tempestade sem fim. O céu quebrado e revolto de outro mundo. Era para onde eu estava indo, meus sonhos pelo menos se não somos nós que vamos quando se dorme. O cheiro era horrível. Ácido e azedo como suor, sujeira e roupa mofada e molhada. Na escuridão eu sentia mãos me segurando e um peso enorme. Um peso grande demais. Na escuridão eu sentia algo frio no meu rosto. Duro e liso como uma parede de pedra. Uma voz quente e nojenta sussurrando e não podia fugir. Aquele cheiro enchendo a minha respiração até fazer o ar faltar.

    A luz do fogo invade a escuridão. Meus olhos se abrem para a parede e não dá para levantar. Não dá pra mover os braços, eles pesam uma tonelada. As pernas além de qualquer sensação. O frio chegava nos ossos. Alguma coisa apertava o meu rosto no chão, segurando minha cabeça enquanto se movia em cima de mim. O que você faria? Eu tentei gritar. Consegue sentir a voz tentando sair? Ouvir o que não é mais que um sussurro estrangulado? O desespero. A confusão. O medo de novo. O medo e alguma outra coisa tentando sair.

    A sensação das mãos faz tudo ficar diferente. A mão nas minhas costas, ele ia me ajudar. Claro que ia. Esperança pode ser tão cruel. O ar frio da noite entrando pela camisa junto com a mão suja e áspera sem nenhuma intenção de me ajudar. O corpo pesado e fedido em cima do meu. Não estou tentando te fazer odiar ninguém, é o que eu lembro. O que ficou. Você sabe que eu posso mentir com palavras, mas não com isso. Não com essa merda de cheiro entrando na sua cabeça. Não com as lágrimas queimando os seus olhos como queimaram os meus. Não com a mão nojenta se enfiando na minha calça roubada antes de puxá-la pra baixo. Não vai fugir agora, vai? Veio até aqui? Não dê as costas para isso. Não é essa a traição que estava procurando? Pena, vai ficar até o final agora.

    Eu não sabia o que ele tava fazendo ou que tava acontecendo. Você sabe. Dá para ver. Não quer ver, né? Não estou tentando te fazer odiar esse pobre mendigo. Nem quero que fique com pena do garoto, os monstros não nascem prontos. Até os piores deles tem coisas para aprender.

    A sensação de impotência era terrível. O caminho para fugir ao alcance dos dedos, mas impensável. O nariz ardia junto com os olhos. Você sabe como é chorar não sabe? Sabe como é sentir dor? Claro que sabe? Mas aquela dor era nova e estranha e pedia uma resposta nova. Ela se espalhava pelo corpo como um relâmpago, rápida e cegante deixando fogo no seu rastro. Um instante e o mundo todo tinha sido reduzido a dor. Ossos estalando, rachando e fundindo. Músculos esticando, queimando e partindo. O mundo fica mais claro. Mais vivo. Os cheiros, a dor, o gosto do refluxo da pizza, o frio na pele e o toque do homem.

    O peso do mundo tinha sido retirado das costas em um longo e doloroso momento. A dor fazia parecer minutos. O idiota finalmente entendendo onde tinha se enfiado mostrava que foram segundos. A incredulidade quando ele olha o próprio sangue escorrendo da mão. O gosto maravilhoso que aquele humano asqueroso tinha, o dedo dançando entre os dentes. Me perdoe a confusão, mas é difícil lembrar.

    Sim, a mão foi a primeira coisa que eu alcancei com meu novo corpo que era forte grande como ele, mas afiado e feito para matar. Eu tinha provado aquilo antes e me banqueteado. Eu sabia que era errado, mas não ia parar em um dedo. Nem com os outros dois ali. Eles tinham feito uma fila e algum fascínio medonho os mantinha olhando para mim assim como o homem olhava o rasgo sangrento onde antes ele tinha um dedo. Um encanto frágil que quebrou quando eu fui tirar mais um pedaço. Eles gritaram e correram, menos o que estava na minha frente. Íntimo demais para isso agora. Ele lutou e gritou e esperneou. Foi divertido e difícil até ele me furar com o canivete. Eu estava em cima dele agora rasgando o rosto sujo. Os dedos descendo e deixando rastros vermelhos e abertos. O nariz mastigado ainda no rosto.

    Ele me fura de novo antes de tudo ficar vermelho e quente dentro da minha cabeça. Alguma coisa lá dentro sabia o que fazer e exigia o comando. Como você quando entrou aqui só que avassalador e inegável. Alguma feita com partes de mim, ou eu feito com partes dela. Mais um furo e aí eu já não sentia mais dor ou frio ou fome. Eu só conhecia fúria.

    Não, não é isso que você sente. Não é o que eu sinto agora. O que ficou na memória é uma palida lembrança de um sentimento grande demais para caber fora do agora. Fora do presente. Algo que queima as sinapses e não faz casa em pensamentos ou palavras. Não é uma cegueira ou o rompimento da razão. É uma clareza exigente. Um incêndio. Um maremoto. É divindade.

    Eu passo todo momento acordado fugindo disso e sonhando com chance de tocar essa sensação outra vez.

    Eu era maior que ele. Poderia ter acabado com aquilo em um instante. Mas era a celebração de uma liberdade inebriante demais para simples eficiência. Ouve ele gritando? Sente a carne dele entre os dedos? A resistência enquanto eu puxo? Os músculos dele partindo sob a pele. O braço direito sai e abrindo os segredos do ombro humano para a noite fria. Ele não era mais nada além de algo pra mastigar. Essa sensação deliciosa na garganta enchendo o corpo todo é o gosto dele. Sob lenta e determinada pressão o crânio demora, mas se parte.

    Ele parou de se mover e não tenho tempo para ele. Eu preciso dos outros dois.

    Sente o peso novo nas pernas a cada passo? Como esse peso não parece nada? Os passos largos e sem a menor dúvida. Hesitação é um conceito alienígena. O rastro no ar diz mais do que se pode pôr em palavras. Diz tanto sobre eles, o que fizeram hoje, sua saúde, para onde estão indo, onde estiveram e como estão morrendo de medo. Dá para sentir essas coisas sem precisar pensar, não que não fosse possível a névoa vermelha não afasta o pensamento, dá motivo e direção para toda a existência. Permite ação desabusada de amarras morais. Livre de qualquer amarra que se possa romper ou escapar. É bonito não é? Mesmo esse eco abafado e erodido pelo tempo. Mesmo essa sombra pálida e insossa. Plenitude de verdade, esqueça essa merda de nirvana.

    O som dos ossos estalando e partindo quando ponho as mãos nele. Nem ligo pro outro fugindo, não há fuga. Não há escapatória. Morte já séria o fim deles antes de habitar em mim para adiantar a sentença. Ele não olha para mim. Se arrasta para longe como se tivesse alguma chance de chegar a segurança se arrastando no asfalto gelado com a coluna quebrada. Os passos do outro marcados pelas minhas orelhas sem nenhuma ordem. Afundar as garras nas costas dele tinha uma função prática, é difícil se debater com garras afiadas segurando suas costelas por dentro. Acho que ele queria gritar, mas os pulmões não ajudavam mais em nada. Eu sentia eles se rasgando entre meus dedos na luta desesperada pela vida programada na carne humana. Já se perguntou quão forte um coração bombeia o sangue? Parti o pescoço daquele fiapo desesperado de pessoa e sangue jorrou para dentro da minha boca e para todo o lado. É, é esse gosto delicioso e quente de vida e poder dançando juntos.

    Não precisei parar de mastigar para achar o outro. Você tá ouvindo? A respiração escapando pelos dedos na frente da boa, tentando esconder. Dá para ouvir o coração também batendo feitos os pistões de um motor. Não corri por pressa ou medo. Ele estava exatamente onde eu queria, mas cansaço e economia não existem em um corpo desses. Só movimento e propósito. Deu para ouvir o grito dele quando eu cai em cima do carro que ele usava para se esconder. Os pés e mãos tentando tirar ele dali. Inútil para ele. Um jogo divertido para mim.

    Ele fecha a boca e aperta os dentes com força quando minhas garras afundam na panturrilha. Deveria dizer nossas? Consegue sentir também, não é? A carne macia e quente. O sangue molhando tudo tão diferente da noite fria. O barulho das unhas raspando no chão desesperadas por uma chance de viver. Não essa noite. Eu era o fim. O abismo. A escuridão devoradora. Eu olhei bem para ele antes de enfiar os dentes no seu rosto. Ele gritava e gritava e gritava. Me empurrava e lutava e não parou até o fim. Um sobrevivente disposto a lutar até contra as piores expectativas. Um traço admirável.

    O gosto era o mesmo dos outros.
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