HÓRUS - Narmer

O dia amanheceu com um forte sol em Tínis.

Na pequena aldeia mineradora de cobre à beira do Rio Nilo, era a estação de cheia do grande rio, o que impedia o cultivo das poucas fazendas aluviais próximas. Isso fazia com que os trabalhadores que serviam como agricultores na época de baixa do Nilo estivessem agora em outras ocupações, como caçar avestruzes no deserto ou transportar os carregamentos de cobre para o palácio de Kamosés, o governador severo e opressor de Tínis.


Essa era a grande inconveniência para Narmer e todos os outros mineradores, que eram exigidos ainda mais nessa época para aumentar a produção das minas de cobre. O duro trabalho ficava ainda mais duro, com capatazes e feitores impacientes e exigentes. Embora Tínis não tivesse exércitos, os guardas de Kamosés faziam um trabalho de segurança razoável, suficiente para inibir qualquer demonstração de revolta da população.


Narmer tinha 16 anos, e mesmo assim já era um veterano das minas. Qualquer criança capaz de segurar uma picareta era empregada nas minas para aumentar as baixas rendas das famílias, e poucos dos aldeões chegavam aos 30 anos, e quase nenhum aos 40. Os pais de Narmer, Nefru e Nimatre, ainda não tinham 40 anos, mas estavam bem perto disso.



Narmer era tão forte e resistente quanto os melhores homens de Tínis, mas era muito habilidoso, num nível sobre-humano. Mas o que realmente o diferenciava eram suas percepções extremamente aguçadas, que o capacitavam a ver e ouvir coisas que ninguém mais percebia. Ás vezes ele conseguia até ouvir pensamentos. Mas os sonhos premonitórios eram muito mais extraordinários, fazendo com que Narmer conhecesse coisas que nunca vira.

Naquele dia, sob o calor extremo e na escuridão dos túneis da mina que escavava, Narmer viu-se repentinamente no interior de um grande templo. Em frente a ele, um deus gigantesco ajoelhou-se para olhá-lo com atenção.

Era Hórus.

Contando com Nefru e Nimatre, Narmer tinha 12 escravos rebeldes para apoiá-lo, armados de nada mais do que picaretas de mineração.

Kamosés tinha uma dezena de soldados armados de lanças e espadas em seu palácio da aldeia. Dois deles vigiavam o portão de entrada dia e noite, enquanto os outros oito ficavam no interior do edifício.

Graças a alguns servos domiciliares, Narmer tinha uma boa ideia de como era o interior da construção.

Spoiler:

Agora cabia a Narmer definir a estratégia para atacar o palácio sobre o manto da noite.

Ao cair da noite, apenas Narmer e Nefru foram admitidos ao palácio da cidade de Kamosés. O regente da vila era cauteloso.

Conduzidos ao interior do salão de audiências, Narmer encontrou Kamosés sentado num banco baixo, com a esposa e o filho ao lado dele

Spoiler:

Junto dele havia vários servos. Os guardas ao redor eram seis, e tinham passado por dois na entrada. Os outros dois que completavam as forças de Kamosés não estavam à vista.

- Vocês pediram que eu os recebesse. Digam o que desejam!

 - Eu, Narmer, deus Hórus encarnado, estou aqui para exigir o que me é de direito: tudo 

Como Narmer esperava, houve comentários e protestos indignados de vários presentes, mas Kamoses não abriu a boca. Seus olhos estavam fixos no escravo que se declarava um deus.

Como o nomarca não se manifestasse, em algum momento os servos se calaram e deixaram que Narmer prosseguisse.

- Começo exigindo essa aldeia, que embora seja pequena diante de Tínis e insignificante comparada a magnanimidade do império que construirei, é nela que tudo se inicia. Dessa forma, declaro que seu tempo como governador chegou ao fim e que o povo não está mais sob seu domínio. Entretanto, Kamosés, esse momento não precisa ser o seu fim. Os homens que me acompanharem terão glória, ouro e seus nomes perpetuarão na eternidade. Você pode ser um deles.

Kamoses manteve silêncio por um longo momento, com o vento do deserto ecoando pelo salão de pedra, trazendo os odores perfumados do jardim interno do nomarca. Seus soldados já estavam apertando os cabos de suas lanças, preparados para agir assim que seu líder desse a ordem.

Mas Kamoses disse ponderadamente:

- Você diz ser Hórus reencarnado, e espero que possa provar o que diz ou sua execução será severa por tal blasfêmia. Mas você exige a posse dessa aldeia, e isso é inconcebível. Todas as terras do Alto e do Baixo Egito pertencem à Faraó Nefertite, o Junco e a Abelha, filha de Hórus e neta de Rá. Acha que ela permitirá que leve essa rebelião adiante? Assim que ouvir que você tomou essa aldeia, ela enviará seus exércitos e o destruirá! O que diz disso, Narmer, filho de Nefru?

A revelação de todos os detalhes, alguns até mesmo íntimos, fez com que todos os soldados de Kamoses caíssem de joelhos, admirados.

- O Olho de Hórus que tudo vê! 

- Ele possui o Olho de Hórus!

- Hórus encarnado está entre nós!

Mas o nomarca Kamoses, mesmo impressionado, era mais racional que os guerreiros egípcios.

- E não cabe a ti, Kamoses, questionar-me sobre os meus passos, pois você carece de capacidade para compreendê-los. Contudo, mantenha-se leal a mim e você verá Nefertite dobrar os joelhos ou ser esmagada diante da minha soberania.

 - Seu poder é impressionante, Narmer, o próprio Olho de Hórus! Como poderia eu me negar a fazer o que tu dizes? Tens o poder para arrebatar minha autoridade e exercê-la tu mesmo! Mas agora diga-me, avatar de Hórus, como pretendeis fazer frente ao poderoso exército egípcio sob o comando de Nefertite?

Kamoses fez o que Narmer pedira.

Diante do palácio da vila, Narmer encarou uma centena de pessoas. Havia dez soldados de Kamoses, os pais de Narmer e seus oito companheiros que depositaram fé nele de início. Os demais oitenta aldeões tinham sido compelidos pelas ordens de Khamoses, que ocupava um cargo que reconheciam.

Esses oitenta ainda não depositavam fé em Narmer, mas o obedeceriam se suas vidas não fossem ameaçadas.

Todos esperavam pela fala de Narmer.