Capítulo Dois: Perdas na Noite

Rakum viu o momento perfeito. O halfling com certeza deve ter pensado que Aach Crvenka, afinal, não era um homem tão inteligente assim. Num movimento rápido e preciso, Rakum corta a corda que lhe prendia os pés e na mesma força com que saltou, correu na direção de Crvenka, a adaga nas mãos. O mago, mesmo surpreso, conseguiu desviar, mas a adaga fez um grande corte em seu robe negro, revelando uma perna pálida e sem pelos.

Kara, também pega de surpresa, conseguiu pensar rápido numa forma de neutralizar o pequeno sem feri-lo, mas seus dedos não acompanharam seu raciocínio, e a energia esverdeada envolveu o outro halfling, que estava amarrado à escada. Hildir sentiu suas forças se esvaindo e suas pernas tendo mais dificuldade em suportar o próprio peso.

Kara viu que Aach começou a fazer gestos e a dizer palavras semelhantes as que ela própria havia usado a pouco, mas em vez de esverdeada, foi uma energia rubra que envolveu a mão do mago. Rakum, em seu ímpeto, desferiu um forte golpe na coxa de Aach, fazendo-o arquear um pouco o corpo, mas isso não impediu que a energia fosse disparada contra o bárbaro. Presa Gélida arrancou a adaga da perna de Crvenka pronto para o próximo golpe, mas o halfling não teve tempo. Suas forças deixaram seu corpo de tal forma que Rakum caiu sobre os joelhos.

Aach não sorria, mas também não esboçava sentir a dor da perna rasgada.

- Vamos, Kara.

Denir e a filha já haviam descido, assim como um dos mercenário. Apenas Will estava na escada, com a mão no cabo da espada. Aach não esperou pela resposta de Kara. Aach havia partido, mas suas criaturas ficaram.

Completamente sem forças depois de ter dado o máximo, Rakum tenta se levantar, de joelho não consegue se levantar colocando toda força em seus braços curtos. Sem o que fazer, o nanico encosta na parede esperando suas forças retornarem para pode alcançar seu mais novo inimigo mortal, Aach.

Footsilver já parecia estar sem forças antes mesmo de ter sido atingido pelo raio esverdeado da maga. A morte de seu fiel amigo chegou por um momento até tirar a vontade de Hildir de viver. A dor era grande, mas havia uma motivação forte para ele continuar vivendo: a vingança. Não era um sentimento nobre que o halfling se orgulhava de ter, mas ele não conseguirá viver em paz até destruir Aach. O feiticeiro era a representação do mal supremo, uma criatura sem escrúpulos, sem sentimentos, sem amor. Ele não era vivo e tampouco estava morto. Em sua essência ele não passava de um ser insignificante, cuja alma foi corrompida e mutilada através de tantos assassinatos de sua responsabilidade.

Um pouco mais calmo agora, Hildir procurou por seu outro amigo e o viu encostado na parede num estado penoso.
- Rakum... - chamou quase que sussurrando. Ele não tinha forças para falar mais alto do aquilo. - Corte as nossas amarras. Temos um... um objetivo para seguir em frente.

Ao ouvir seu amigo, Rakum tenta se aproximar e cortar as cordas que amarrava seu amigo, com a propria adaga que havia matado seu fiel amigo.

Abatido, o Gnomo apenas olha o desenrolar da cena esperando chegar sua vez de ser liberto. As lágrimas começam a correr fartas em sua tez. Não era comum. Mas a resignação de Hildir o fazia sofrer muito, no momento.

Kara ainda ficou olhando o ser caído sem qualquer sentimento em seu rosto. Ela tentava analisar a situação na cabeça, mas não saia muito do lugar. Era a primeira vez que acontecia isso com ela, deixando-a perturbada. O que não impediu dela falar:

- Levantem e lutem contra estes bichinhos. Se tiverem coragem e força, poderão vir atrás de seu objetivo.

A maga disse estas palavras se virando em seguida para descer as escadas. Ela não era uma pessoa má, apenas servia a sua igreja. Sua missão era levar Aach para a tal cidade e apenas isso. O que seria depois, já não dizia respeito a ela.

"Se eles forem inteligentes, acharam as marcas que deixarei pelo caminho. Assim eles poderão resolver suas pendencias bem longe de meus olhos e de minha missão"

Rafur permanecia amarrado sem conseguir se soltar...e pede por ajuda dos que já haviam se soltado.

-Ei vocês me ajudem aqui...

Ele se forçava a pensar que Moradim tinha um propósito para tudo estar acontecendo daquela maneira, era precisose tornar mais forte para conseguir chegar ao objetivo final, e o anão não estava dispoto a desistir.

- Desamarre Rafur e o restante.

Assim que se viu com as mãos livres, Hildir pediu ao seu amigo para que também desamarrasse o anão e os outros. O halfling caminha abatido até o corpo de Duncan, onde ele se agacha e abraça o seu fiel companheiro. Hildir fica abraçado ao cão sem dizer mais nada, e sem se importar com o resto à sua volta. Ele sabia que Duncan se fora, mas era difícil para ele admitir isso.

Kara desceu as escadas em silêncio, e da mesma forma subiu em um cavalo, que já estava selado e preparado na rua que ficava atrás da alfaiataria. O céu estava cinza escuro, e neve surgia dele, esparramando-se no chão e começando a cobrir as ruas e casas de Heliogabalus. Aach não disse uma palavra sobre o ocorrido. De cima de seu cavalo, Crvenka se dirigiu para Denir, o homem que a maga viu fazendo sexo com sua própria filha.

- Precisamos passar em sua casa antes de partir. Preciso tratar esta mão.

Após dizer isso, Aach Crvenka virou seu cavalo e bateu com as botas nele, que desatou noite adentro, com Kara, Denir e os outros logo atrás.

Ao redor do cadáver fresco de Duncan, Rakum se arrastou até Hildir, cortando, com mãos pouco firmes e fracas, as cordas que amarravam as pernas do amigo à escada. O esforço havia sido enorme, e o bárbaro não conseguiu fazer nada além de cair de costas no chão e esperar. Esperou por longos minutos durante um silêncio absoluto, durante minutos em que a tristeza era palpável no ar. Rafur pediu por ajuda, e tudo o que Rakum consegui fazer foi virar seu rosto ao anão, impotente.

O halfling notou que havia um risco vermelho no teto. Respingos acompanhavam o espesso risco que cruzava o teto da janela à escada. Não era preciso pensar muito para saber que havia sido aqui que o alfaiate foi morto. O halfling fechou os olhos, e então sentiu suas forças retornando a si, o formigamento nos músculos dos braços e das pernas, os dedos tendo pequenos espasmos. Poucos minutos depois, estavam todos libertos.

O lugar onde Denir vivia era simples e modesto. Sua cama ficava ao lado de um forno de barro, havia uma mesa e cadeiras ao lado de uma janela. O outro cômodo da casa tinha apenas mais camas e um baú, onde as pequenas riquezas desta família eram guardados. Aach estava esperando na mesa quando a filha de Denir voltou com uma bacia de água quente, vinagre e alguns panos limpos.

- Acredito que me excedi - Crvenka disse enquanto a garota limpava os tocos dos dois dedos arrancados pelo mago - Eu sempre faço as coisas sem pensar quando fico excitado com o momento, quando sinto o corpo quente e meu coração forte! Agora, por causa disso, tenho dois dedos a menos.

Aach olhou para Kara e sorriu. Os mercenários haviam ficado do lado de fora, e Denir esquentava vinho para afastar o frio.

- Me disseram que foi o próprio Isaac Nanvador quem lhe atribuiu a tarefa de me levar até o Templo da Benção Noturna em Porlith. Eu imagino a razão de tão alto sacerdote ter tomado para si uma coisa que poderia ser feita por um acólito qualquer... – Aach fechou os olhos no momento em que a menina ruiva apertava as bandagens ao redor da mão do mago. Crvenka suspira profundamente antes de continuar - Eu soube que o templo em Porlith é muito bonito, e que eles tem uma biblioteca incrível lá. Você conhece o lugar, Kara? Estou especialmente interessado em livros sobre a diversidade planar da existência.

Hildir abraçava o corpo de seu fiel amigo e companheiro. O pelo estava empapado em sangue, o corpo estava ficando frio e a língua de Duncan pendia, inerte, para fora da boca. O paladino não se importou com nada disto. Apenas abraçava Duncan. Rakum soltava os outros, que passavam as mãos pelos pultos e tornozelos, onde as cordas haviam feitos marcas e feridas. Hildir, em sua dor, não havia dado muita atenção, mas Thomas, Rafur e os outros notaram que as criaturas de Aach estavam ali, e se movendo entre eles.

Uma busca rápida revelou os equipamentos de todos empilhados em um armário no quarto, as armaduras e armas jogadas no chão. O corpo de Duncan foi ficando cada vez mais gelado e rígido enquanto os demônios se arrastavam pela sala, obstruindo a escada e a janela, cercando a porta do quarto e Hildir, que abraçava o cadáver de seu amigo. Todos notaram que as criaturas não iriam atacá-los até algo acontecer, e isso era provavelmente parte do joguinho doentio de Aach Crvenka.

Kara seguiu calada olhando quase que a viagem inteira para Aach. Ao mesmo tempo que a maga o temia, ela sentia alguma forma de curiosidade nele. O que ele era, o que ele representava. Tudo isso passava em sua cabeça de forma rápida e sem resposta. Porém, ela não podia deixar que ele percebesse esta insegurança, fazendo com que seu semblante continuasse frio como vem se mostrado até então.

Quando chegaram na casa, Kara desceu de seu cavalo, o amarrou e foi andando para dentro. Ali ela procurou algum canto em que fosse confortável, mas acabou se mantendo em pé próximo a janela, do lado oposto a Crvenka. Ali ela olhou por uma das frestas procurando algo no meio daquela neve ao mesmo tempo que sua cabeça vagava nos prisioneiros do mago. Sua mente só voltou pro ambiente quando a palavra havia se dirigido a ela.

- Passei boa parte de minha vida servindo aos desejos da minha Deusa, Sr. Crvenka. O pouco que eu estava em momentos pessoas, eu me limitava ao meu quarto e aos estudos nele... Acredito que eu não seja a melhor pessoa para te informar sobre a beleza do templo. - Disse olhando para o mago e voltando para a janela no meio de sua frase.

Quando ela cruzou o olhar com Aach, algo a a intimidava e quando ela virou a cabeça era exatamente para evitar isso. Não era sinal de desrespeito ou de superioridade. Ela só estava fugindo.

Rafur simplesmente se ateve a pegar suas coisas e vestir sua armadura. Ainda não sabia ao certo o que os dêmonios queriam.

-Por Moradim! O que faremos agora...

A cena de seu companheiro agarrado ao cadáver era triste e impactante. Já havia ouvido sobre magia de clérigos que poderiam trazer de volta a vida aqueles que morreram. E nesse momento desejou ser mais forte e chegar lá um dia.

Rafur encara os demônios e fica os observando, padrão de movimentos e se estavam de fato a observá-los.

Os minutos pareciam horas a Hildir. Ele ficou debruçado sobre o corpo de Duncan por muito tempo, pelo menos a ele pareceram horas e horas de lamento e dor. Mas isso tinha que ter um fim. O halfling enxugou com a mão uma última lágrima que teimava em não escorrer por seus olhos, e se levantou encarando seus amigos, com uma postura séria e decidida.

- Peguem suas armas e vistam suas armaduras - ele disse de tal modo imperativo que a voz soara como não sendo dele.

A passos lentos o halfling se dirigiu até as suas coisas, sem olhar nenhuma vez para os demônios que ali estavam, embora estivesse totalmente ciente de suas presenças.

Moore fica aguardando a liberdade. Quando ela chega ele já sabia. Crvenka fugira. Muito se passou até que ele pudesse ir atrás do atroz vilão. Queria matá-lo com as mãos. Um ímpeto de vingança se apoderava dele. Queria ver o infame sofrer. E veria.

Foi até o armário, não sem antes passar em frente ao cão companheiro. Era sofrido. Vê-lo ali, imóvel era demais para o homem e as lágrimas voltam a rolar. Pega sua bolsa visando matar Aach. Veste a armadura visando matar Aach. Empunha sua besta visando matar Aach. Crvenka deveria tê-lo matado. Moore faria um pacto com o que fosse se conseguisse matá-lo.

De pé. Ele espera o sinal.

Aach ouviu a resposta de Kara sem parecer decepcionado, apesar da pequena maga ter notado que o interesse dele era real. A filha de Denir tinha mãos habilidosas e firmes e em alguns minutos limpou  o toco onde antes estiveram os dedos de Crvenka e atou a mão com uma faixa de linho e depois uma de algodão, isso depois de passar um cataplasma com cheiro acre que o próprio Aach entregou para ela. Com a mão limpa e o curativo pronto, todos se prepararam para partir. Aach teve a ajuda indesejada de um dos mercenários para subir em sua montaria, e logo esporou seu cavalo rumo à Porlith, com  Will cavalgando à frente, Shagga seguindo ao seu lado e Kara e os outros atrás.

Em dois dias, no máximo três, a tarefa estaria concluída, e Kara estaria livre do fascínio e do medo por Aach Crvenka.

Thomas foi o primeiro a terminar de se arrumar. O gnomo estava obstinado de uma forma que o grupo nunca vira antes, uma ira brilhava em seus olhos castanhos, uma ira rara entre essa raça tão alegre. Os outros também se vestiram: armaduras, placas peitorais, manoplas, coragem, fúria. O quarto era pequeno e simples, mas todos conseguiram se preparar, pedindo ajuda uns aos outros quando preciso.

O raspar de unhas na longa sala onde todos estavam era constante. Eram as criaturas de Crvenka andando, andando e andando. Todos puderam ver quando dois deles se colocaram entre eles e a escada. Era claro o que aconteceria, era claro que isso fazia parte do jogo sádico de Aach Crvenka, só restava saber quem ganharia.

mapa:

O halfling havia terminado de colocar todas as partes de sua armadura. Ele colocou o elmo por último, prendeu-o, e pegou sua espada e alçou seu escudo. Era o retrato de um cavaleiro em miniatura, só que desta vez sem a sua leal montaria. Hildir adiantou-se à frente do grupo e encarou os demônios que bloqueavam a sua passagem. Ele não aparentava raiva, mas o seu coração naquele momento estava explodindo em uma ira inabalável.

Hildir conjurou auxílio divino sobre si mesmo, e se virou para os demais, perguntando:
- Estão prontos para limpar o caminho? - mais uma vez a voz soara como se não fosse o halfling que o grupo conhecia.

Kara estava pronta para ir quando todos se inclinaram a partir, mas propositalmente deixou seu amuleto sobre a janela quando sairam. Ela estava o segurando na mão numa oração para sua Deusa enquanto esperavam. Ali mesmo, quando ela tocou o parapeito da janela, o amuleto permaneceu e ela saiu andando com os demais.

Se ninguém percebesse que ela havia o deixado ali, Kara iria dizer que havia esquecido o mesmo para poder voltar. Lá ela deixaria no lugar do amuleto um pergaminho escrito: Porlith. Somente isso.

A maga ainda tinha que fazer seu dever, que era levar Aach a salvo para o templo. Isso ela o faria mesmo que tivesse que passar por cima de qualquer pessoa. Porém, algo a intrigava naquele ser e nos demais que faziam de tudo para pegá-lo. Ela daria uma chance para que suas duvidas fossem sanadas no futuro.

Rakum ainda estava completamente cansado depois da sua exceção de fúria, mas o pequeno era poderoso o suficiente para combater por mais alguns minutos.

- Sim, vamos acabar logo com isso - Dizia com uma voz completamente seca e diferente.

O jovem Barbaro segura firme seu machado e espera pelos outros a hora certa de agir.