Em algum canto escuro de um Universo esquecido, duas figuras invulgares se sentavam ao redor de uma mesa simples, de dimensões imensuráveis, sobre a qual repousava um tabuleiro quadriculado, no qual estavam dispostas e organizadas peças finamente trabalhadas, com um detalhismo meticuloso.
De um lado da mesa, estava uma mortalha enegrecida e esfarrapada. Escuridão infinita tomava o lugar onde deveria haver um rosto, e mãos descarnadas e ossudas emergiam sob as pesadas mangas, os dedos displicentemente entrelaçados em frente ao vazio onde deveria existir uma boca.
Flutuando ao lado do ente macabro, jazia uma imensa foice negra (Ou seria uma espada? Ou seria um machado? Ou seria uma lança? Ou seria uma adaga?), como um lembrete nada sutil das consequências daquilo que poderia estar por vir.
Do outro lado da mesa, havia uma nebulosa com contornos humanóides. Era como se o Cosmos pudesse se condensar e, por obra de pura vontade, assumir a forma que quisesse. Um observador atento observaria poeira cósmica e até mesmo explosões de novas e supernovas no corpo daquela criatura não menos que divina.
Ao contrário de seu adversário, estrelas gigantes faiscavam no lugar de olhos, e alongadas nuvens de puro brilho compunham narinas, boca e ouvidos.
As mãos repousavam ansiosamente sobre a mesa, e as estrelas lançavam luz sobre o tabuleiro.
Uma voz grave e agourenta, vinda de algum lugar sob a mortalha, disparou, quebrando o silêncio:
- Não há como escapar a este pequeno desafio, e deixar de mover a primeira peça vai apenas retardar o inevitável.
A luz das estrelas, outrora derramada sobre o tabuleiro se elevou até o não-rosto sob a mortalha, e desapareceu na escuridão.
E então um piqueiro, na linha de frente do exército branco disposto sobre a mesa, saltou duas casas adiante, sua lança reluzente em riste, apontando na direção do exército oposto, negro como piche.
Os dedos ossudos do responsável pela companhia de ébano finalmente se desenlaçaram.
E, assim, talvez fosse decidido o destino de tudo o que há.
******
Chovia pesadamente no pântano de Chahich, e nem mesmo aquela volumosa precipitação era suficiente para dissipar a onipresente névoa, escura e de odor desagradável.
Sob a água, no meio da névoa e sobre camadas inacreditáveis de lodo e lama, um cavaleiro, envergando armadura completa, outrora perfeitamente branca, trazendo o desenho de um dragão dourado na placa peitoral e no escudo, golpeava, aparava e esquivava, dançando uma dança de vida e morte com uma criatura que um dia já fora humana.
Os olhos vermelhos, garras e presas do oponente do cavaleiro eram armas formidáveis, e mesmo os sucessivos cortes que o monstro recebia se fechavam em poucos segundos, prolongando aquele combate de forma absolutamente anormal.
Em determinado momento, o cavaleiro fintou um golpe e, na sequência, enterrou sua lâmina no ombro da sua criatura, que urrou de dor - um grito de gelar os ossos.
O monstro, então, usou de suas garras e rasgou o elmo de metal do cavaleiro, trespassando o aço e cortando a carne do rosto do outro combatente.
Tomado pela adrenalina do combate e pela dor, o cavaleiro girou o punho no cabo da espada e, em um movimento brutalmente preciso e treinado, arrancou a cabeça de seu oponente de sobre os ombros. O corpo inerte do monstro ameaçou desabar pesadamente sobre a lama e o lodo, mas ao invés disso se desfez em cinzas antes de tocar o solo.
O cavaleiro, então embainhou a espada e removeu o elmo destruído, revelando uma face entalhada, do lado esquerdo, por quatro fendas sangrantes, que iam da testa ao queixo. Seu olho, quase que milagrosamente, estava intacto.
Ele, então, praguejou e olhou em volta, enquanto a chuva lavava suas feridas e a armadura branca, recolhendo uma lâmina negra do meio do pântano - uma adaga cujo cabo trazia uma ônix encravada no cabo, e a inscrição Nihil entre os fios de corte.
O cavaleiro branco, cansado e ferido, cambaleou para fora do pântano, levando consigo a prova de seu triunfo, e depois cavalgou para fora daquela terra amaldiçoada.
******
As vestes manchadas de sangue e icor não impediram que Sir Cardrik de retornar à Cidade-Estado de Petut'yun sob aplausos e festa.
Montando seu corcel branco, o cavaleiro trotou lentamente, passando pelas largas alamedas de pedra, ladeadas pelas estátuas de grandes heróis do passado, enquanto se perguntava se, algum dia, seria digno de tamanha honraria.
Sozinho, o herói trazia uma multidão atrás de si, enquanto fazia seu caminho até a mansão do regente.
Passo após passo do cavalo, mais e mais pessoas se juntavam à comitiva, gritavam e cochichavam sobre a tremenda façanha que fora derrotar o vampiro do pântano, atribuindo notas fantasiosas e lisonjeiras sobre o teor da batalha.
Sir Cardrik, no entanto, não olhava para trás, não respondia aos acenos do público, e sequer piscava. Ele apenas precisava alcançar seu destino.
Ao chegar à larga escadaria que separava a alameda principal da mansão do regente, o cavaleiro desmontou, deixando seu cavalo e a turba para trás, e começou a subir lentamente os degraus, um por vez.
No topo da escada, Sir Donovan, regente da capital e braço direito do Rei aguardava, impassível.
Quando finalmente diante do nobre, Sir Cardrik se ajoelhou e, com uma reverência, puxou a adaga Nihil de dentro das vestes.
A lâmina negra parecia roubar a luz do entorno, e tornar o ambiente ao redor sufocante quando Sir Cardrik a ofereceu a Sir Donovan.
- Eis a prova de que a aberração foi destruída, meu senhor. O corpo do monstro se desfez em cinzas quando separei a cabeça de seu corpo, mas por alguma razão esta relíquia permaneceu no local.
Os olhos de Sir Donovan faiscaram e, após um breve momento de hesitação, ele tomou para si a adaga.
Assim que a arma trocou de mãos, Sir Cardrik sentiu seu rosto úmido e notou que seu sangue deixava o seu corpo, escorrendo volumosamente até o chão.
Outras feridas, menores, causadas pelo vampiro do pântano evoluíram para cortes profundos e largos, drenando rapidamente a vida do cavaleiro.
Sir Cardrik tentava respirar, mas aparentemente havia sangue em seus pulmões e, com um engasgo, o cavaleiro cuspiu sangue sobre as vestes do regente.
Ao fazer um último esforço e olhar para cima, o cavaleiro viu o que parecia ser Sir Donovan com a adaga na mão esquerda, mas seu rosto... O regente não possuía mais um rosto.
Finalmente cedendo à dor e à perda de sangue, o Cavaleiro Branco tombou, sua armadura e vestes agora completamente escarlates.
*****
Sir Cardrik se surpreendeu ao abrir os olhos e acordar em uma cabana simples de madeira com cobertura de sapê. Estava deitado em uma cama de feno, o peito nú e o torso enfaixado com bandagens brancas, ligeiramente tingidas de vermelho.
Sobre sua testa havia um pano molhado, e ao lado da cama um balde com água fresca.
Em um dos cantos do cômodo, jaziam o que um dia foi um elmo de aço e um peitoral branco adornado com um dragão dourado, atualmente pedaços inúteis de metal rasgado e torcido, com um misto de cores que variava do cinza
esverdeado ao rubro, com uma ou outra área quase branca.
Próximo ao mesmo canto, estavam encostados um grande escudo de cavaleiro, partido em dois, e uma espada de mão-e-meia, ainda suja de sangue e lama.
O herói, confuso, tentou se sentar, em vão: seu braço esquerdo estava quebrado e enfaixado, imobilizado, firmemente preso a um pedaço de madeira quase reto; ao menor movimento, o tronco doía enormemente, denunciando múltiplos ferimentos e, provavelmente, algumas costelas quebradas.
Passados alguns minutos, uma jovem, com não mais que seus 15 anos de idade, entrou no local, e suspirou ao ver o cavaleiro acordado.
- O que houve? Onde estou? Quem é você?
Ao formular as perguntas, Sir Cardrik sentiu gosto de sangue um líquido quente voltando pela garganta.
A menina observou, por um momento, e então disse:
- Meu nome é Kalinka. Encontrei o senhor desacordado e ferido no pântano, onde diziam haver uma fera. Eu o trouxe para cá e cuidei de suas feridas. Isso já faz um mês.
A confusão de Cardrik aumentou.
- Isso não é possível! Eu destruí o vampiro do pântano... Levei a adaga... Como prova... A cidade... Sim, eu voltei à cidade.
- Meu senhor, isso é impossível - respondeu Kalinka, o ar deixando seus pulmões com uma óbvia expressão de desânimo e tristeza - A cidade inteira foi destruída um pouco antes de eu encontrar o senhor... Meus pais estavam lá... Alguma febre tomou conta de todos e fez com que matassem uns aos outros... E por fim veio o incêndio... Ninguém escapou.
Os grandes olhos castanhos da menina se encheram de lágrimas e, por fim, ela cobriu o rosto jovem com as mãos e caiu de joelhos, impotente.
*****
- Acho que capturei a sua torre, irmão.
A voz cavernosa que soava por sob a mortalha misturava notas de sadismo e alegria genuína, enquanto uma torre branca como marfim dançava entre dedos descarnados.
- Xeque.
De um lado da mesa, estava uma mortalha enegrecida e esfarrapada. Escuridão infinita tomava o lugar onde deveria haver um rosto, e mãos descarnadas e ossudas emergiam sob as pesadas mangas, os dedos displicentemente entrelaçados em frente ao vazio onde deveria existir uma boca.
Flutuando ao lado do ente macabro, jazia uma imensa foice negra (Ou seria uma espada? Ou seria um machado? Ou seria uma lança? Ou seria uma adaga?), como um lembrete nada sutil das consequências daquilo que poderia estar por vir.
Do outro lado da mesa, havia uma nebulosa com contornos humanóides. Era como se o Cosmos pudesse se condensar e, por obra de pura vontade, assumir a forma que quisesse. Um observador atento observaria poeira cósmica e até mesmo explosões de novas e supernovas no corpo daquela criatura não menos que divina.
Ao contrário de seu adversário, estrelas gigantes faiscavam no lugar de olhos, e alongadas nuvens de puro brilho compunham narinas, boca e ouvidos.
As mãos repousavam ansiosamente sobre a mesa, e as estrelas lançavam luz sobre o tabuleiro.
Uma voz grave e agourenta, vinda de algum lugar sob a mortalha, disparou, quebrando o silêncio:
- Não há como escapar a este pequeno desafio, e deixar de mover a primeira peça vai apenas retardar o inevitável.
A luz das estrelas, outrora derramada sobre o tabuleiro se elevou até o não-rosto sob a mortalha, e desapareceu na escuridão.
E então um piqueiro, na linha de frente do exército branco disposto sobre a mesa, saltou duas casas adiante, sua lança reluzente em riste, apontando na direção do exército oposto, negro como piche.
Os dedos ossudos do responsável pela companhia de ébano finalmente se desenlaçaram.
E, assim, talvez fosse decidido o destino de tudo o que há.
******
Chovia pesadamente no pântano de Chahich, e nem mesmo aquela volumosa precipitação era suficiente para dissipar a onipresente névoa, escura e de odor desagradável.
Sob a água, no meio da névoa e sobre camadas inacreditáveis de lodo e lama, um cavaleiro, envergando armadura completa, outrora perfeitamente branca, trazendo o desenho de um dragão dourado na placa peitoral e no escudo, golpeava, aparava e esquivava, dançando uma dança de vida e morte com uma criatura que um dia já fora humana.
Os olhos vermelhos, garras e presas do oponente do cavaleiro eram armas formidáveis, e mesmo os sucessivos cortes que o monstro recebia se fechavam em poucos segundos, prolongando aquele combate de forma absolutamente anormal.
Em determinado momento, o cavaleiro fintou um golpe e, na sequência, enterrou sua lâmina no ombro da sua criatura, que urrou de dor - um grito de gelar os ossos.
O monstro, então, usou de suas garras e rasgou o elmo de metal do cavaleiro, trespassando o aço e cortando a carne do rosto do outro combatente.
Tomado pela adrenalina do combate e pela dor, o cavaleiro girou o punho no cabo da espada e, em um movimento brutalmente preciso e treinado, arrancou a cabeça de seu oponente de sobre os ombros. O corpo inerte do monstro ameaçou desabar pesadamente sobre a lama e o lodo, mas ao invés disso se desfez em cinzas antes de tocar o solo.
O cavaleiro, então embainhou a espada e removeu o elmo destruído, revelando uma face entalhada, do lado esquerdo, por quatro fendas sangrantes, que iam da testa ao queixo. Seu olho, quase que milagrosamente, estava intacto.
Ele, então, praguejou e olhou em volta, enquanto a chuva lavava suas feridas e a armadura branca, recolhendo uma lâmina negra do meio do pântano - uma adaga cujo cabo trazia uma ônix encravada no cabo, e a inscrição Nihil entre os fios de corte.
O cavaleiro branco, cansado e ferido, cambaleou para fora do pântano, levando consigo a prova de seu triunfo, e depois cavalgou para fora daquela terra amaldiçoada.
******
As vestes manchadas de sangue e icor não impediram que Sir Cardrik de retornar à Cidade-Estado de Petut'yun sob aplausos e festa.
Montando seu corcel branco, o cavaleiro trotou lentamente, passando pelas largas alamedas de pedra, ladeadas pelas estátuas de grandes heróis do passado, enquanto se perguntava se, algum dia, seria digno de tamanha honraria.
Sozinho, o herói trazia uma multidão atrás de si, enquanto fazia seu caminho até a mansão do regente.
Passo após passo do cavalo, mais e mais pessoas se juntavam à comitiva, gritavam e cochichavam sobre a tremenda façanha que fora derrotar o vampiro do pântano, atribuindo notas fantasiosas e lisonjeiras sobre o teor da batalha.
Sir Cardrik, no entanto, não olhava para trás, não respondia aos acenos do público, e sequer piscava. Ele apenas precisava alcançar seu destino.
Ao chegar à larga escadaria que separava a alameda principal da mansão do regente, o cavaleiro desmontou, deixando seu cavalo e a turba para trás, e começou a subir lentamente os degraus, um por vez.
No topo da escada, Sir Donovan, regente da capital e braço direito do Rei aguardava, impassível.
Quando finalmente diante do nobre, Sir Cardrik se ajoelhou e, com uma reverência, puxou a adaga Nihil de dentro das vestes.
A lâmina negra parecia roubar a luz do entorno, e tornar o ambiente ao redor sufocante quando Sir Cardrik a ofereceu a Sir Donovan.
- Eis a prova de que a aberração foi destruída, meu senhor. O corpo do monstro se desfez em cinzas quando separei a cabeça de seu corpo, mas por alguma razão esta relíquia permaneceu no local.
Os olhos de Sir Donovan faiscaram e, após um breve momento de hesitação, ele tomou para si a adaga.
Assim que a arma trocou de mãos, Sir Cardrik sentiu seu rosto úmido e notou que seu sangue deixava o seu corpo, escorrendo volumosamente até o chão.
Outras feridas, menores, causadas pelo vampiro do pântano evoluíram para cortes profundos e largos, drenando rapidamente a vida do cavaleiro.
Sir Cardrik tentava respirar, mas aparentemente havia sangue em seus pulmões e, com um engasgo, o cavaleiro cuspiu sangue sobre as vestes do regente.
Ao fazer um último esforço e olhar para cima, o cavaleiro viu o que parecia ser Sir Donovan com a adaga na mão esquerda, mas seu rosto... O regente não possuía mais um rosto.
Finalmente cedendo à dor e à perda de sangue, o Cavaleiro Branco tombou, sua armadura e vestes agora completamente escarlates.
*****
Sir Cardrik se surpreendeu ao abrir os olhos e acordar em uma cabana simples de madeira com cobertura de sapê. Estava deitado em uma cama de feno, o peito nú e o torso enfaixado com bandagens brancas, ligeiramente tingidas de vermelho.
Sobre sua testa havia um pano molhado, e ao lado da cama um balde com água fresca.
Em um dos cantos do cômodo, jaziam o que um dia foi um elmo de aço e um peitoral branco adornado com um dragão dourado, atualmente pedaços inúteis de metal rasgado e torcido, com um misto de cores que variava do cinza
esverdeado ao rubro, com uma ou outra área quase branca.
Próximo ao mesmo canto, estavam encostados um grande escudo de cavaleiro, partido em dois, e uma espada de mão-e-meia, ainda suja de sangue e lama.
O herói, confuso, tentou se sentar, em vão: seu braço esquerdo estava quebrado e enfaixado, imobilizado, firmemente preso a um pedaço de madeira quase reto; ao menor movimento, o tronco doía enormemente, denunciando múltiplos ferimentos e, provavelmente, algumas costelas quebradas.
Passados alguns minutos, uma jovem, com não mais que seus 15 anos de idade, entrou no local, e suspirou ao ver o cavaleiro acordado.
- O que houve? Onde estou? Quem é você?
Ao formular as perguntas, Sir Cardrik sentiu gosto de sangue um líquido quente voltando pela garganta.
A menina observou, por um momento, e então disse:
- Meu nome é Kalinka. Encontrei o senhor desacordado e ferido no pântano, onde diziam haver uma fera. Eu o trouxe para cá e cuidei de suas feridas. Isso já faz um mês.
A confusão de Cardrik aumentou.
- Isso não é possível! Eu destruí o vampiro do pântano... Levei a adaga... Como prova... A cidade... Sim, eu voltei à cidade.
- Meu senhor, isso é impossível - respondeu Kalinka, o ar deixando seus pulmões com uma óbvia expressão de desânimo e tristeza - A cidade inteira foi destruída um pouco antes de eu encontrar o senhor... Meus pais estavam lá... Alguma febre tomou conta de todos e fez com que matassem uns aos outros... E por fim veio o incêndio... Ninguém escapou.
Os grandes olhos castanhos da menina se encheram de lágrimas e, por fim, ela cobriu o rosto jovem com as mãos e caiu de joelhos, impotente.
*****
- Acho que capturei a sua torre, irmão.
A voz cavernosa que soava por sob a mortalha misturava notas de sadismo e alegria genuína, enquanto uma torre branca como marfim dançava entre dedos descarnados.
- Xeque.