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    Sete dias no escuro

    Tellurian
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    Mensagem por Tellurian Dom Jun 18, 2023 12:24 am

    O que será de nós após a nossa morte?

    Eu costumava acreditar ter a resposta a essa pergunta. Eu tinha a certeza absoluta que, ao morrermos, nossas funções cerebrais cessam e nós deixamos de existir. Não haveria algo como “escuridão eterna” porque simplesmente não haveria mais uma mente que contemplasse essa escuridão. Após a morte, a inexistência. O oblívio.

    Hoje, já não sei mais. Não tenho como explicar nada. Não tenho como entender nada. Mesmo agora, enquanto escrevo essas linhas, não sei se enlouqueci, e tudo não passa do delírio de uma mente psicótica. Mas a mesma mentalidade racional e pragmática da qual sempre me orgulhei, o empirismo científico ao qual sempre defendi, são exatamente as razões pelas quais não posso negar que estou sozinho nesse exato momento. Que estou aqui. Com frio, no escuro, com fome. E absolutamente apavorado.

    Eu não consigo explicar onde estou além da palavra “inferno”.

    Eu SEI que nada disso deveria estar assim. Racionalmente isso deveria ser impossível. Esta estação de metrô onde eu estou preso a quase uma semana deveria estar lotada. O cheiro de parmesão do pão de queijo barato e amendoim torrado vendido nas barraquinhas deveria permear os corredores, somando-se ao turbilhão sonoro de uma miríade de musicas de mau gosto vindo de celulares mal educados e dezenas de milhares de vozes em conversas simultâneas. Pessoas se acotovelando, disputando preciosos centímetros na plataforma de embarque, tentando esquivar ao mesmo tempo da multidão que luta pra desembarcar e do vão entre o trem e a plataforma. Sobrecargas sensoriais que quem vive em cidade grande pensa que está acostumado à despeito das frequentes dores de cabeça inexplicáveis.

    Mas eu não posso recusar o que meus sentidos me mostram. O silêncio cortante que te permite ouvir o próprio coração batendo descompassado. Nem uma alma viva na estação. Nenhum ruído. Nenhum movimento. Como negar o frio ridículo, impensável para essa época do ano? Não posso negar os tremores, as mãos geladas, o nariz dormente.

    Como negar o negrume que me envolve? Uma escuridão profunda, densa, opaca. Uma escuridão tão profunda apenas o subterrâneo poderia conceber. Eu não me atrevo a acender luz a menos que seja absolutamente indispensável. Eu raspo o fundo da lata de sardinhas, me esforçando pra fazer o mínimo de barulho possível. Está gelado e amargo. Como tudo nesse lugar arruinado.

    Quão sozinho se está na presença da própria sombra?

    Posso te contar uma coisa? No escuro, sua sombra não morre. Ela está lá, invisível. Te observando. Te acompanhando. Imagine agora a presença de outras sombras em meio a escuridão. Sombras sem dono. Sombras famintas.

    Estar sozinho não significa ser o único aqui. De vez em quando, alguém se perde, como eu. Eu ouço eles falando. “Que lugar é esse?” ou “Tem alguém aí?”, eles gritam. Gritam, vejam só. Pobres coitados desavisados. E então ouço os gritos de desespero, que logo se transformam em gritos de morte. E por último os ouço comendo. E aí, silêncio de novo.

    Você pode me julgar por ignorar os condenados. Por não ser um herói. Por ser um rato covarde escondido na escuridão, tentando respirar o mais baixo possível. Mas você não sabe de nada.

    Você tem ideia do quão é torturante? Ouvir as últimas palavras de pessoas? Ouvi-las gritar por ajuda? Implorar? Tem noção da angústia de ouvir os gorgolejos molhados de alguém em plena agonia enquanto reza pra não ser o próximo?

    Eu não acredito em Deus, principalmente em um que tenha permitido que esse lugar maldito exista. Mas as orações me trazem algum conforto. Um mínimo de sensação de proteção enquanto eu ouço as sombras farejando a escuridão.

    Oh, Deus, que não me vejam. Oh, Buda, que não me ouçam. Oxalá, me proteja. Allah, me guarde. Qualquer um, por favor, qualquer um, me ajude.

    Não há um padrão. Pode acontecer com qualquer um, em qualquer lugar, a qualquer momento. Você atravessa a catraca do banco e então está aqui. Você boceja no banco da praça e vem parar aqui. Você atravessa um túnel dirigindo e do outro lado o que te aguarda é o inferno. Eu já ouvi vários tipos de vozes perdidas. Velhos, mulheres… crianças.

    Meu deus, a menina. Pobrezinha. Pela voz, não tinha nem dois dígitos de idade. Chorava. Chamava pela mãe. Eu ouvi as sombras chiando ao ouvi-la. Não foi rápido. Foi excruciante. Eu… eu não quero lembrar. Não quero.

    As vezes, minha vontade é sair do escuro e gritar a plenos pulmões. Pôr pra fora tudo. Ter uma morte horrenda e então… paz. Finalmente, paz.

    Mas… eu morreria mesmo? A paz viria? Ou eu voltaria para cá de novo? Eu… seria um deles? Ou voltaria como outra vítima? Eu lembraria? Saberia me defender? Pensar nas hipóteses me faz hiperventilar. A cabeça gira.

    E então a luz cega meus olhos acostumados a escuridão. O silêncio é rompido brutalmente pela erupção de um milhão de vozes falando ao mesmo tempo. Eu finalmente consigo olhar em volta. Estou sentado numa privada. Dentro da cabine de um banheiro público na estação de metrô. Estou fedendo.

    Óbvio, não tomo banho nem escovo os dentes a uma semana.

    Eu saio da cabine e as pessoas em volta torcem o nariz pro morador de rua fedido que ousou incomodar seu dia a dia sagrado. Eu me olho no espelho e vejo que eles tem razão. Estou imundo, barbudo e com os cabelos desgrenhados. Definitivamente preciso de um banho Eu saio do banheiro e a estação está entupida de pessoas. Eu consegui. Sobrevivi a mais uma semana. Mais sete dias no inferno ficaram pra trás.

    Agora é pensar em quando vai acontecer de novo. Mês que vem? Ano que vem? Amanhã? Onde eu vou estar? No shopping? No cinema? Em casa? Não sei.

    Pode acontecer em qualquer lugar. A qualquer hora. Com qualquer um.

    Acho que vou deixar uns sanduíches na mochila dessa vez. As latas de sardinha definitivamente não foram boa ideia.

    Você deveria se preparar também.


    ======

    Oie!

    Espero que tenham gostado. Eu realmente gosto de escrever Horror, é um dos meus temas favoritos, principalmente por ser bem difícil de despertar as emoções corretas no leitor.

    Se quiserem me dar uma mão, eu agradeceria bastante quem puder deixa um like e um comentário lá no perfil desse conto no Medium Very Happy

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