As chamas ardiam e, com elas, um cheiro de fuligem, carne e madeira queimada impregnavam o ar. Mas não era só. Havia também um certo perfume...
A pira, habilmente montada por Garona, também desfazia ervas aromáticas castigava pedras muito específicas. Havia algo muito místico naquele momento, como se o próprio Tyr tivesse dado a mão às entidades cultuadas pelo povo bárbaro da goliath. Não havia quem derramasse uma lágrima, contudo.
Os gnomos adotaram uma postura sobretudo silenciosa e respeitosa. Ao mirar a face de Garona, parada e impassível, era possível ver o reflexo das chamas dançando em seus olhos. Havia pesar e tristeza ali, mas não era algo comum.
Quando as chamas finalmente cederam, a meio-gigante se adiantou e recolheu as cinzas do corpo, depositando-as gentilmente em uma urna funerária de prata.
Um a um, todos começaram a se retirar do local - não havia mais nada ali para ser lembrado ou lamentado. Sem o calor das chamas, a noite estava mais fria e quieta. Não era sequer prudente permanecer ali, na mata, mais do que o estritamente necessário.
E, assim, em silêncio, volto a passos lentos para a taverna e estalagem.
Cumprimento o taverneiro com um breve aceno de cabeça, pegando uma chave para um quarto onde, finalmente poderia ter uma noite decente de sono.
No recinto, parecido com aquele no qual eu tinha tratado o cadáver de Lysander, havia uma conforável cama com um colchão de palha e travesseiros de penas de ganso. Havia também uma banheira com água quente, cortesia do taverneiro para compensar todo o estresse de um assassinato ocorrido bem debaixo de seus bigodes.
Depois de me certificar de que a porta do quarto estava bem fechada, e de que teria uma minuto ou mais de silêncio e solidão, retiro a capa de viagem e bato a poeira de estrada que se acumulava sobre ela, dobrando-a cuidadosamente e depositando-a no guarda-roupas disponibilizado aos hóspedes.
Em seguida, lentamente desamarro as fivelas que prendiam a pesada cota de malha que protegia do meu torso até as coxas, e dos meus ombros até os punhos. Tiro luvas e botas e, em seguida, deixo cair o peso de todo o aço que me defendia através das aventuras. Junto com a armadura, coloco de lado minha espada, Juramento do Céu, para repousar por uma noite.
Finalmente, removo as roupas que ficavam ocultas sob a carapaça metálica, revelando um corpo muito branco, esguio e bonito, mas também marcado de cicatrizes. Algumas eram lembranças de feitos heróicos, de histórias que inspirariam bardos por noites sem fim ao lado de lareiras quentes e bebidas geladas. Outras não eram tão lijonjeiras... Reflexos de uma infância e de uma adolescência ricas em abusos e em todo tipo de agressões.
Com ambas as mãos, massageio brevemente meus ombros cansados antes de, nua, me afundar na banheira e na água quente.
Mantendo apenas a cabeça e os cabelos molhados para fora daquele precioso líquido, começo a repassar, mentalmente, tudo o que tinha acontecido desde que chegara ao Coração da Floresta, enquanto ensaboava o corpo e deixava a água fazer os músculos relaxarem.
Eu tinha vindo a Selbin seguindo a trilha de bandidos do bando de Cicatriz, farejando algo mau.
Assim que cheguei, me deparei com o gentil gnomo mago, o Sr. Namfoodle. Ele parecia ser boa pessoa, mas tinha consigo algo muito caótico, algo potencialmente perigoso.
Logo em seguida, veio o entrevero com Garona - por Tyr, como devo tê-la julgado mal! - e a breve conversa com Lysander. Minha meta original cedeu lugar a uma missão muito maior do que eu poderia sonhar encontrar em uma pequena taverna, em uma vila no meio da floresta.
E, então, os cultistas... Eles chamaram minha atenção desde o início, e eu deveria ter sido mais atenta a eles. Lysander pagou com a vida pela minha desídia...
Uma lágrima se forma, sorrateira, no canto dos olhos dourados, e despenca sobre a água quente enquanto penso que não pude salvá-lo. E como eu queria ter podido evitar o destino de Lysander!
Passo alguns minutos refletindo sobre isso e, então, volto meus pensamentos ao que nosso empregador tinha, efetivamente, contado. Repasso cada linha dos mapa e da carta, cada palavra da conversa até o tiro final e fatal.
Depois, apenas caos. O tiro, a morte, as joias espalhadas, a confusão pelo ataque, e um ataque contra a minha própria vida, do qual fui salva por Garona...
Afundo a cabeça na água, fazendo com que o cheiro de fuligem e poeira que impregnava meus cabelos desaparecesse em meio a sais de banho e espuma. Com as respiração presa, dou um grito, de pura angústia. Um que não seria ouvido por ninguém, contudo, abafado pelas águas quentes.
Quando finalmente emerjo da água, agora limpa e perfumada, como aqueles elfos dos contos da fadas, me seco e sento sobre a cama feita. Escondo o rosto entre as mãos por um momento e, então, começo a encarar Juramento do Céu.
Quando Rahm Tor, meu querido professor, me presenteou com aquela espada, ele foi categórico ao dizer:
Esta espada, pequena Nadien, é mais que só uma espada. Ela jamais provará a carne e o sangue dos justos e há uma chance em dez de que ela faça algo realmente extraordinário. Por isso, ela não deve ser empunhada a não ser que seja absolutamente necessário, e deve sempre ser direcionada contra o mal que assola o mundo. Eu não quero dá-la a você mais do que ela própria quer se doar a você, minha discípula. Use-a com sabedoria.
Sabedoria... Exatamente o que me faltou ao não antecipar o ataque que matou Lysander...
Olho, então, para a seta, ainda suja de sangue, retirada do corpo do nosso empregador. Eu sabia que precisava encontrar o responsável por aquele ataque e puní-lo pelo que fez, mas por onde começar?
Nadien, trate as prioridades como prioridades. Tyr há de revelar o caminho.
E com esse pensamento em mente, novamente encarando Juramento do Céu dentro de sua bainha, deito meu corpo naquela cama confortável, e encosto da cabeça no travesseiro de penas de ganso, pegando no sono...
Galopando um corcel sagrado por entre campos em chamas, a Paladina Azul vem à frente de uma tropa, pronta para se abater como a vingança de Tyr sobre todo o mal do mundo, sobre a raiz de todo o mal do mundo. Poeira em brasa corta o ar, arrancada do chão pelos cascos brilhantes do garanhão encantado, e gritos ecoam vastamente naquele derradeiro campo de batalha.
Sangue.
O cheiro ferroso invade as narinas dos combatentes, se misturando ao tilintar de lâminas vindos umas ao encontro das outras, em uma dança de vida e morte. Sons úmidos são ouvidos enquanto aço corta carne, formando uma melodia com passos, estrondos e gritos.
Diante d'A Azul, uma sombra imensa, toda garras e chifres, toda maldade, vem rasgando o campo de batalha...
E, então, acordo.
A luz do dia seguinte entrava por frestas na janela de madeira, fechada, e castigava meus olhos.
Estava descansada - ao menos o corpo - e sabia que precisava seguir viagem em breve.
Assim, me visto novamente, trocando as roupas usadas por outras, limpas e secas. Tão logo tivesse oportunidade, lavaria a antiga muda de roupas em um rio qualquer.
Por sobre as novas vestimentas, anéis de metal, fivelas de couro, uma capa azul e um tabardo. Em seguida, pego Juramento do Céu e, com solenidade, tiro a lâmina azulada uns cinco centímetros de sua bainha, encarando o fio da arma, cujo brilho era impecável. Devolvo a espada à bainha e a prendo às minhas costas.
Gasto, ainda, uma hora completa rendendo orações e homenagens a Tyr, para que o Deus me honrasse, no dia por vir, com seus dons mágicos.
Só então pego minha mochila e desço, do quarto até o assoalho da taverna, passando pelas portas duplas e deixando o sol da manhã tocar minha face.
Do lado de fora, esperava o Sr. Nam, já ladeado por uma mula e com uma mochila bastante inchada - em especial, se considerado o tamanho diminuto do aventureiro.
Bom dia, Sr, Nam... O Senhor teve progresso com a mensagem cifrada? Está pronto para a viagem?
Mais adiante, uma cena pitoresca. A goliath, metros adiante, caminhava trazendo o outro gnomo em seu ombro.
Fico boquiaberta por um instante, mas logo depois sorrio. Aquele grupo de aventureiros e a forma como se formou eram, ambos, improbabilidades. Mas podia dar certo.
Assim, sorrio, sozinha, alargando os lábios adornados por um batom vermelho, que contrastava com as vestes azuis.
Tecendo preces a Tyr, silenciosamente, invoco meu corcel sagrado, um grande cavalo de montaria protegido por uma armadura completa, que reluzia sob o sol da manhã.
Ofereço uma das mãos ao Sr. Nam, dizendo:
Aceita uma carona?
Caso aceitasse, terminaria de arrumar a mochila na sela do cavalo, colocaria o gnomo sobre a montaria e subiria depois, deixando o pequenino diante de mim, como uma criança, e seguiria, a passos lentos, até onde Garona e Nimb estavam.
Caso não, simplemente arrumaria a mochila na sela do cavalo e, fazendo um sinal para que o gnomo e sua mula me acompanhassem, seguiria a trote lento até os demais companheiros do grupo.