No rastro de Wendy

Wendy parece não poder te ver, mas ouve sua voz e faz uma carinha de determinação que dá mais pena que confiança. O salão de jogos é ao mesmo tempo incrível e medonho. As paredes e o chão são diferentes. Vermelhos em veludo. Luxuoso. Como se vocês fossem a realeza. O lugar não é um simples retângulo, mas tem vários ambientes dentro do seu espaço. Por sorte seu anfitrião está bem perto. Em uma mesa com uma daquelas roletas de aposta. Ao seu lado uma mesa vazia de poker com um croupier esqueleto muito bem arrumado. Televisões de tubo antigas, mas com uma imagem clara. Tão perfeita como uma lembrança boa ficam passando cenas sem som.

O terno bonito de risca de giz e azul profundo envolvem outro esqueleto. Limpo e sem nem um pedaço de carne. Os ossos polidos, mas não brancos. Ligeiramente amarelados como deveriam ser. É impossível de saber se ele se incomoda com o que Shaw diz. Mas ele se levanta de sua cadeira para ouvir. Antes do uratha terminar tem uma bandeja com dois drinks com guarda-chuva na mesa. Real? Espirituais? Os dois?

"Primeiro eu preciso dizer que admiro sua postura, sem lua. Mas não me mostrou um bom negócio. Deixe me lhe dar um conselho, se é que isso tem valor, não comece pelo que você precisa quando for negociar. " Ele toca a bandeja empurrando ela um pouco na direção dos dois. As orbitas vazias poderiam estar olhando para qualquer lugar, mas impossível não sentir que estavam fixas neles. "Agora, no começo eu achei que nunca ia me encontrar, lua crescente... Mas quando apareceu, poderia ser? Uma parte de mim teve esperança. Esperança de que tivesse desvendado meu chamado. Que tivesse se aliado ao medo pra entregá-los a mim. Uma oferenda. Eu aceitaria só para ver os dois tremendo em suas casas construídas com paranoia. Achei que estava aqui para mostrar o quanto estavam dispostos a sacrificar por mim. Mas eu olho para os dois e sei que não foi pericia e uma profunda e sagaz ardilosidade que trouxe os dois aqui. Não foi respeito e devoção. Só..." De alguma forma ele parece profundamente desapontado. A sensação vem das luzes e paredes. Do chão e do ar a sua volta. Vem das imagens nas tvs onde o anfitrião sorridente assassina brutalmente seus hospedes. Seja com garrote ou faca. Martelo ou picareta. Drinks envenenados ou travesseiros durante o sono.

"Vou confiar que vão pagar o meu preço pelo que pediram. Não tem outra escolha." Agora a voz dele vem dos aparelhos de tv e não do esqueleto. Chamando ainda mais a atenção para as cenas sangrentas. "Sua amiga está presa a você, sem lua. Você é um grilhão impedindo que ela siga o seu caminho. O mesmo caminho das almas de todos os mortos humanos. Você a viu morrer, eu sei, agora eu vi também. " A cena aparece em todas as tvs. A menina sendo engolida. Os pezinhos passando pela garganta enorme do monstro uratha. "Você é a única coisa que fez sentido para a morte dela. A única parte do mundo que ela ainda entendia. Você correu para ela, não foi? Se importou? Se aproximou das chamas para salvar a mariposa. Tarde demais." A boca da fera se fecha. Ela olha na sua direção com olhos que são estrelas azuis.

"Por isso já me devem. Posso libertá-la e pagarão ainda mais. De um jeito ou de outro não espero vê-lo de novo por aqui lua crescente. Eu aconselho deixar ela ir. Deixar ela ir pra bem longe dos Sombras descarnadas. Eles guardam almas de humanos mortos. Dá para imaginar." Ele olha para tela vendo o rosto congelado da fera. "Isso é um problema rapazes. Que tal pagarem sua divida e sumirem daqui enquanto ainda podem? Alguém tem que resolver isso, não é?" A voz voltou a sair do esqueleto. Novamente ele toca na bandeja prateada com os copos de cristal.

As televisões continuam mostrando cenas de um anfitrião matando cruelmente seus hospedes. Uma mulher em uma uma banheira, sua pele dissolvendo em acido. Um homem engasgando na sala de jantar. Duas crianças sendo massacradas com uma marreta de amaciar carne. "Não querem ofender. Nem desrespeitar. Mas não tocaram nos drinks." O tom é sério. A voz sai de dentro do esqueleto a sua frente. "Já estão dominados pelo medo. Quanto tempo até ele ser a sombra no canto dos seus olhos? O frio rastejante no seu sono?" Ele gira a roleta do seu lado e as bolinhas dançam entre as posições numeradas fazendo seu barulho repetitivo. Madeira batendo em madeira.

"Respeito suas decisões filhos do Guardião Lunar. Mas deixe-me te dizer que a garota está presa a você. Correntes feitas de nada que possa tocar. Nada que possa destruir. Deixe eu te dizer mais ainda, ela não sabe o que precisa ser feito. Alguns deles passam centenas de anos assim. Até nada mais fazer sentido e o mundo a sua volta ter se tornado irreconhecível. Um inferno feito pela fraqueza dela. Mas se acha que ela está segura onde está? Se tiver azar vai ouvir e ver ela ser devorada. Se tiver sorte ela vai assistir seus ossos apodrecerem enquanto ela fica presa a algo que não existe mais." As cenas nas tvs agora mostram eventos festivos. O salão de jogos cheio de gente e diversão. O salão de jantar abrigando uma festa de aniversário. A inauguração de um novo andar.

"Paguem urathas e vão." Imediatamente sente-se uma pressão quando o Hotel dos Ossos tenta retirar seu pagamento de seus corpos.

Custo:

As paredes do Hotel parecem acompanhar cada passo dos urathas até bem depois de o terem deixado. Nenhum dos outros espíritos de morte chega perto dos dois. O caminho de volta é pesado com duvidas e apreensão. As palavras do espírito uma sombra. O claro sofrimento de Wendy parece ainda mais agudo depois dela.

Passar pela fonte deixou as coisas mais leves. Estar de volta ao mundo da carne é um calmante que faz lembrar aos urathas que ainda há muito que percorrer.

"Sim e não. Posso tentar falar com ele, mas não é muito seguro. Tem alguma informação importante? Ele tá fazendo a própria investigação, tenho certeza. Quer falar com ele?" A resposta demora menos de cinco minutos. Os dois companheiros de alcateia estão sentados em um banco frio de praça enquanto isso. Os últimos acontecimentos frescos e agitados em suas mentes. Do contrário a noite é silenciosa e vazia. Exceto por wendy que aparece as vezes para dizer que se perdeu e agradecer por terem encontrado ela.

A resposta dela é só um endereço. Nada mais. Um bar no território neutro. Perto bem embaixo de um teatro mal frequentado. Em menos de meia hora os quatro estão em uma mesa. Duas canecas de cerveja duvidosa, uma latinha de refrigerante e uma garrafa de água mineral na mesa. O lugar fede a um monte de coisas. Poesia revoltosa e ruim disputa as paredes com indecências e musica. Pichações e rabiscos. O garçom é uma criatura a parte. Olhos esbugalhados e um sorriso enorme e amarelo de tabaco e café. Ele fede como uma mistura de suor e filtro de cigarro afogados em café barato. Mas lembra o pedido e é rápido com o serviço.

Do outro lado da mesa Amy e Rebeca. A segunda parece ter sido arrancada da cama e coberta com um casaco antes de sair. O cabelo bagunçado e o rosto, não só limpo, mas um pouco amassado também. Porém ela sorri quando sua latinha chega e aumenta o pedido com fritas e hambúrguer. Amy já parece desperta e ativa. Tênis de corrida. Roupa de corrida. Um moletom bem preto por cima de tudo que vai para a cintura assim que vocês se sentam.







"Bar do Frances. Tem outro nome, mas ninguém liga. A música é um pouco mais alta do que deveria, mas Rich passou uns meses mexendo aqui e ali nas caixas de som e a gente paga ao Frances um por fora pra ter essa mesa com sofá de costas altas. Melhor acústica do lugar, quase dá pra conversar sem gritar." Ela fala baixo, mas a audição de uratha consegue alcançar a voz da lua cheia. "Que!??!" Rebeca reclama sem entender.

"Gostei daqui." A voz de wendy era um sussurro, mas era impossível Shaw não ouvir. "Silencioso." Ela se esconde atrás do irraka. Os olhos de Rebeca curiosamente fixos nele.

"Eu também não sei. " Rebeca diz com um sorriso muito surpreso. "Quem é que sabe o que fazer?" Amy ri descontraída. Mas não reponde. Continuam ouvindo Shaw. "Olha, cara, não é bem a minha praia. Eu quebraria qualquer coisa ligando vocês dois. Se tem alguém que vai falar com alguma propriedade são os Filhos do Corvo. Garra de Ébano e Loba sem Sombra. Trouxe Rebeca porque ela vê a Wendy." A mulher balança a cabeça fazendo sim. "Eu tentei mandar ela embora. Pra ela se soltar. Ficar livre. Não deu certo." Ela fala meio distraída com a escrita de Ethan.

Amy faz uma careta "Olha, o que é melhor pro protetorado você nem devia pensar muito. O melhor é se livrar do pai dela. Desse jeito ai mesmo." Ela diz antecipando a percepção de Shaw. A voz de wendy vem emburrada do outro lado. "Papai nunca vai desistir. Ele me ama, nunca vai me deixar pra trás." Ela claramente não entendeu. "Olha, eu não sei se tem um jeito de ele falar com ela. Acho que é impossível. Logo... Não tem um jeito de pacificar isso. Mas a gente pode dar uma chance de eles e despedirem se você quiser. Mas ele pode não acreditar e de um jeito ou de outro eu não sei o que isso vai significar pra ela." A rahu meche no cabelo com o dedo. Puxa e e enrola enquanto pensa olhando para a mesa. "Eu ia gostar dessa chance, mas ia despedaçar o cara que usasse isso pra m enganar. Ele... Tocado pelo fogo? Ele pode ser bem particular com mentiras e ele pode achar que a gente tá mentindo." Wendy responde de novo "Papai nunca mente. Nunca. Ele odeia mentira."

Rebeca concorda com wendy. Ela ouve o que a menina diz.

Shaw escreveu:...deixa para lá!

Rebeca definitivamente não deixa para lá. Continua olhando para Shaw com toda atenção do mundo. Absolutamente imune a dispensa dada pelo irraka ao assunto. "Eu o que?" As expressões dela causam estranheza e insegurança. Ela estava irritada? Curiosa? Intrigada? Não dava para saber. Só dava para ter certeza que os olhos dela perfuravam mais do que o véu entre o natural e o mundo ethéreo.

Quando o irraka diz que ela fez bem ela concorda e sorri, mas imediatamente depois volta para a mesma postura interrogativa anterior. "Eles me dão muito medo. Os mortes. Sempre com cara de fome." Ela se sacode e é a vez de Amy concordar. "Eles são sinistros demais. Difícil aceitar que eles são uma parte de tudo. Mas tem muito daquilo na gente. Nos nossos. Desde o começo é uma parte da gente. Uma parte crucial e inescapável. Não é?" Ela joga a pergunta para o Ithaeur do outro lado da mesa.

"Proteger como?" A pergunta não parecia exigir uma resposta. Era quase retórica. "Eu acho que é um caminho arriscado, mas não sem recompensas. Também preciso dizer que vai ser bem difícil encontrar com ele e mais um monte de gente. Se os caras do outro lado quisessem falar só com você, qual seria sua resposta? Um monte deles e só um de você?" Ela descasca um pouco da mesa pensando. "Eu posso ir com vocês se precisarem de segurança ou quiserem uma ponte conhecida."

Rebeca ainda espera pela resposta do Irraka. "Combina com o lugar." Ela joga para o Ithaeur. "Mas o que você acha disso tudo? Você deve ter alguma proximidade com o assunto. Né?" Rebeca se intromete sem deixar espaço para resposta. "Ver... É assim que eles te trancam. Te envenenam até nada mais ser real. Nem vocês." Os olhos penetrantes só pousam no Ithaeur antes de voltar inquisitivos para o irraka. Amy coloca uma mão no ombro de Rebeca. "Já veio aqui antes Ethan?"

Rebeca parece fascinada com a Shaw estar falando dela. "Eu vejo sempre, as vezes eu sei também. Alguns eu ouço. No churrasco eu ouvi. Ela eu ouço. Eu ouço o vento de onde ela tá." Ela faz uma cara de incomodo. "As vezes tem um barulho como uma furadeira gigante, uma serra bem grande bem longe. Algo assim..." Então ela sorri e já não presta mais tanta atenção no irraka.

Amy estica as mãos sobre a mesa uma segurando cada um dos algozes com uma mistura desajeitada de ternura e gozação. "Vocês são uma gracinha, hein!" Quando Ethan fala. "Olha, Shaw. Porra. Nessa hora vai ser bem complicado. A gente tá sobrecarregado e não talvez você tenha que escolher entre eu e Maria. Sério. Não sei se a gente vai ter tempo pra combinar isso, mas o que custa tentar?" Ela assopra como se fosse necessário para pensar. "Melhor ela saber, já que o assunto com Verdade Ardente pode voltar pra foder todo mundo. A gente bagunçou os rastros e interceptou ele. Mas ele ainda tá procurando. Interrogando espíritos. Investigando. Eu contei a verdade pra ele. Real. Mas porque ele confiaria em mim? Ou em você ou até na Maria e no Ethan? Eu falo com a Maria, tamo trabalhando junto em um caso e consigo contactar ele também." Ela levanta da mesa batendo os nós dos dedos nela e apontando para o banheiro.

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Cinco minutos constrangedores depois ela retorna. As bochechas rosadas por algum motivo. "Temos Maria até o nascer do sol, ela tá esperando a gente ligar e o..." Ela inclina o rosto para o lado como que para prestar atenção a alguma coisa. Os olhos ficam parados no pescoço do irraka de forma desconfortável, sem nenhuma emoção. "Peguem suas coisas garotas. Verdade Ardente tá esperando a gente na velha termô." Ela sorri e olha de um para outro como se estivessem prestes a cortar um bolo de aniversário e não ir a um ponto de encontro marcado por um puro. Um puro com razão de sobra pra estar desconfiado e muito furioso. "Vou deixar a Beca na caminha e encontro vocês na 'One stop' da Alfandegalha." Ela faz carinho nos ombros de Rebeca enquanto fala e moça concorda dizendo alguma coisa em espanhol. Talvez frances. Algo que definitivamente não era inglês. "Noite noite mocinhos, não gastem a mesada toda aqui." Rebeca diz sem uma gota de sarcasmo, definitivamente um tanto fora da realidade. Depois ela sussurra para o lado."Boa noite Wendy."

Amy se despede com apertos de mão e tapinhas nos braços. A lua cheia dos uivadores joga uma nota de vinte no balcão antes de sair e xinga o atendente que fazia questão de ignorar o gesto. Só então ele pega a nota e se despede docemente das duas que retornam o cumprimento com entusiasmo antes de ir.

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Off:

Os dois são os primeiros a chegarem na loja de conveniência no bairro em lenta decadência. O lugar vazio. Exceto pelo atendente entediado que nem presta atenção nos dois urathas.