- Seja razoável, Lampreia - disse Raggeti. - Estamos apenas em seis, levaríamos pelo menos meia-hora para preparar a partida de uma caravela como aquela. Saquear demoraria ainda mais. Nada disso. Vamos retornar ao Marlin Negro e zarpar daqui o quanto antes.
- E o meu irmão, capitão? - perguntou Royce.
Albett havia ficado no outro navio, a Senhora da Maré Profunda, sob a incumbência de aguardar o retorno do capitão e de sua tripulação. Sean Dorean também havia ficado por lá.
- Infelizmente não temos tempo para retornar até o navio - disse Raggeti. - Se o seu irmão e aquele garoto forem espertos, eles vão conseguir fugir do Barbarossa e vir até nós a tempo. Se Barbarossa os pegar, não quero nem imaginar o que aquele maluco fará com os dois.
Os marujos já haviam saído da caverna àquela altura. Frac carregava o corpo de Salaman, enquanto Royce o de Lyed. Depois de um tempo caminhando, eles viram os contornos escuros das velas negras do Marlin. Era bom estar de volta ao seu navio, pensaram os marujos. Jolly Roguer os recepcionou com perguntas sobre o que aconteceu, e as respostas chegaram para ele através de várias bocas. Eles sabiam que depois o velho escrivão iria anotar todos os relatos em seus cadernos de anotações.
Outro a ser abandonado foi Thelarq... o amigo de Hyn não retornou de sua expedição até o Desmorto, e Raggeti disse que ele deveria ter sido pego pela tripulação do Sinistro e provavelmente o mataram. Sem mais delongas, eles preparam a sua partida.
O elfo-do-mar conseguiu salvar a vida da maioria dos marujos da Senhora. Apenas três não tiveram salvação: o curandeiro Raikkar, e os criados-de-bordos Thenam e Zírgar. Antes deles irem embora da caverna, Algeon se atentou ao fato que aquele local devia ter sido há muito tempo atrás um santuário para adoradores do Príncipe Golfinho, e que agora ele foi profanado pelos mortos que invadiram e roubaram o Cajado de Arvandor. Sobre o montículo de terra, o elfo do mar ainda pegou para si o amuleto que Sinistro utilizou em seu ritual e que ele havia deixado cair quando uma flecha atingiu sua mão. O amuleto carregava o símbolo do Senhor do Fundo do Mar, e Algeon guardou-o em sua vestimenta.
Eles voltaram para o Senhora. Barbarossa não encontrara o eremita; o velho devia ter se refugiado em alguma toca, e sabe-se lá o que ele faria com o corpo de Emelina. Aproximando-se do navio, Barbarossa avistou um homem que certamente não fazia parte de sua tripulação em cima do deque superior. Era um rapaz vigoroso, com músculos definidos e que cheirava a problemas. Beagan também o viu, e carregou o seu mosquete. O balaço errou o alvo por pouco, atingido a amurada do navio e arrancando um naco generoso dela. O homem se abaixou.
- Não atirem! - gritou. - Estou sozinho, e eu me rendo.
Todos eles subiram a bordo da Senhora da Maré Profunda e viram Rato e Olho-Vesgo amarrados num dos mastros da caravela. O homem rendido explicou que estivera guardando o navio para Raggeti, mas que ele ficaria "honrado" em poder trabalhar para Barbarossa. O velho lobo do mar não gosto de ver seus marujos presos ao mastro, e mandou que os soltassem e colocassem aquele homem - que se chamava Albett - no lugar deles. O capitão ainda pensaria com calma sobre o que fazer com ele. Antes de içarem as velas, Hendrik fez uma observação pertinente:
- Capitão, um dos nossos botes sumiu.
A manhã seguinte amanheceu sob um sol forte, e uma figura solitária caminhava pelas areias da praia aparentando cansaço e sono. Roosevelt não havia dormido àquela noite; não seria seguro dormir em qualquer lugar daquela ilha até que seus desafetos Raggeti e Barbarossa estivessem longe. Agora, o pirata mais uma vez se encontrava sozinho e desamparado. Será que o meu destino é morrer numa droga de lugar como este? Será que eu, o grande Capitão Roosevelt, estou destinado a sofrer com a solidão pelo resto dos meus dias?
A sombra acompanhava pelos grãos de areia os passos desnorteados de Roosevelt. Muitas coisas passavam em sua cabeça naquele momento: o Marlin Negro, o Raggeti, o Marlin Negro, o Barbarossa, o Marlin Negro, o Frac'Eido, e o Marlin Negro. Não havia nada que ele mais desejasse do que tomar o seu navio de volta, mas como ele faria isso sozinho, sem nenhum tripulante para ajudá-lo e ainda preso numa maldita ilha que ele pouco conhecia?
- Está perdido, capitão?
E para piorar tudo, estou ouvindo vozes de dentro da minha cabeça. A solidão deixa mesmo as pessoas loucas, pensou Roosevelt.
- Eu não pensava em encontrá-lo tão cedo! - disse a voz. Roosevelt ainda pensava que a voz partia de sua cabeça, e ele seguia caminhando resignado pela praia, de cabeça baixa e sem mirar um horizonte. - Eu temi que fosse levar dias para encontrá-lo, e que quando o encontrasse seria apenas para sepultar o seu corpo, capitão. Sinto muito por dizer a verdade, mas realmente não esperava encontrá-lo com vida.
Roosevelt se deu conta de que aquela voz era familiar. Ele se virou em direção ao mar, tapando com a mão o sol que vinha de encontro ao seu rosto, e então viu. Sean Dorean, o moleque prodígio que desempenhava a função de despenseiro no Marlin Negro, estava ali em carne e osso, a alguns metros de distância e com uma agradável surpresa sob seus pés: um bote. Era a salvação de Roosevelt. A felicidade engolfou o duro coração do experiente pirata que seria capaz dele dar um abraço e mil moedas de ouro para o moleque, caso ele tivesse as moedas. Não era a primeira vez que Sean ajudava Roosevelt; fora o garoto, há um quase um mês atrás, que alertou Roosevelt de que sua tripulação planejava fazer um motim contra ele.
- Seu fedelho duma figa! - apesar do tom, Roosevelt estava sorrindo como fazia tempo que não sorria. O pirata não encontrava mais palavras para dizer, tal era a sua felicidade naquele momento.
- Está no código que um marujo nunca abandona o seu capitão, não tá? - disse Sean casualmente. Ele viu que Roosevelt parecia hesitante, e complementou: - Não trouxe o Marlin, mas este bote tem espaço para dois e nos fará sair daqui. Além do mais, eu trouxe uma carta a você. É do Capitão Barba-Roxa.
- Uma carta? - perguntou Roosevelt, aproximando-se do bote, ainda sem acreditar na virada de sua sorte.
Sean tirou uma carta de dentro de um dos seus bolsos e estendeu-a. Ela estava toda amassada, e quando Roosevelt quebrou o lacre e tirou o pergaminho de dentro, viu que a caligrafia pertencia de fato ao Capitão Barba-Roxa, seu velho conhecido e um dos únicos amigos que restara. Roosevelt leu do começo ao fim as palavras escritas na carta, e por fim voltou-se novamente a Sean, dizendo com um largo sorriso no rosto:
- Temos um rumo a seguir, marujo.
Hyn despertou de sua dor e de seus sonhos. Enquanto esteve desmaiado, ele havia sonhado o tempo inteiro com Aideen. Sonhou no dia em que a pediu em casamento. Sonhou no dia em que Sinistro e sua tripulação de mortos atacaram o Esperança e raptaram-na. E sonhou em muitos outros momentos, tristes e felizes, em que passou ao lado de sua amada. Mas voltando a realidade, Hyn se viu novamente a bordo do Marlin Negro, e eles já estavam em alto mar. Aideen não havia sido recuperada das garras do Capitão Sinistro, e isto o machucava por dentro. Mas isto também lhe dava forças para continuar a sua incansável busca por Sinistro.
Levou três dias para o darfelano expor os seus pensamentos à Algeon.
- Esta vida de pirata não é para mim, mensageiro-do-mar, e acho que estou certo em falar que não é para você, tampouco. Por um momento esta aliança nos foi útil, mas já não é mais. Eles não irão atrás do cajado, e se forem será apenas para tomar para si o seu poder. E eu ainda nutro a esperança de encontrar o Habitantes das Profundezas, e isto será menos complicado se for com a sua ajuda. Então eu sugiro, mensageiro-do-mar, que nós pulemos fora deste barco e sigamos com os nossos objetivos pessoais.
O elfo-do-mar tinha que concordar com aquilo, e mais: ele sabia que Barbarossa não os deixaria simplesmente ir embora. Portanto os dois esperaram a noite chegar, e quando todos dormiam com a exceção do vigia, eles se esgueiraram pelas sombras e saltaram direto para as águas. O vigia certamente ouviu o baque de seus corpos atingindo o mar, mas o que ele poderia fazer? Ootiliktik e Algeon nadavam tão rápido debaixo do mar quanto corriam em cima da terra, e logo estariam a uma boa distância da Senhora da Maré Profunda.
Câmaras de tortura, celas e corredores. Escuridão. As galerias da masmorra da Ilha de Ferro deveriam estar vazias, mas alguém se movimentava com ligeireza rapidez através dos túneis e câmaras desabitados. Seus passos não faziam som, seu corpo quase não era visível e ele tão pouco estava vivo. Para falar a verdade, ele nem sabia quem era. Mas sabia que procurava algo naquela masmorra.
Onde estava?
Ele viu horrores nas câmaras de tortura, mas não se sensibilizou; viu alguns esqueletos mortos no chão dos corredores, mas passou por cima deles como se eles não existissem ou não fossem importantes; mas então, ele viu. Ele encontrou o que estivera procurando. Ao lado da porta de umas das celas, havia o corpo de um homem pálido. Sua garganta estava aberta e exposta, e por ela vermes e larvas se banqueteavam de seus restos mortais. Mas o que chamou a atenção daquele ser não foram as larvas, e sim o fato dele perceber num lapso de identidade que aquele corpo pertencia a sua existência pregressa. Ele agora não passava de um resquício espectral do que fora antes... antes de Barbarossa passar a lâmina pela sua garganta e assassiná-lo. De repente, ele descobriu a sua motivação e a razão de sua parca existência: assombrar até o fim dos dias aquele que o matou a sangue frio. Por que?
Porque ele era o fantasma de Lew, e era isso que fantasmas faziam.
CONTINUA...