por ayana Dom maio 27, 2018 5:57 pm
Ayana Ngozi Adichie
- Todos somos diferentes e não há nenhum problema nisso. Lembre-se sempre. - Foi a primeira coisa que Alex conseguiu dizer.
Desde muito cedo, Ayana teve consciência de que era diferente. Isso aconteceu na época em que Deus começou a visitá-la à noite, dizendo que ela era uma criança especial. Ser diferente era um enorme privilégio! Entre bilhões de pessoas no mundo, Deus lhe entregou o dever de mostrar a todos o caminho da bondade. Assim, o mundo se tornaria um lugar muito melhor.
A segunda vez que a menina teve consciência de que era diferente foi no enterro de seu pai. Uma multidão havia comparecido. Dias atrás, quando sua mãe foi sepultada, não havia tanta gente, tantos curiosos...
A descoberta do corpo congelado de Abbe, estirado em uma calçada no centro, rendeu conversas por vários dias na pequena cidade pouco habituada com casos de morte acidental. Alguns veículos de comunicação repercutiram o caso. A única matéria que Ayana viu, talvez a mais completa, foi publicada no dia seguinte no jornal local. Contava a história de um homem que tentava lidar com a perda da pessoa amada, mas que por um descuido acabou se juntando a ela. O autor retratou a tragédia com tanta sensibilidade que fez Ayana derramar todas as lágrimas acumuladas desde a morte dos pais. Em meio a tanta emoção, um detalhe lhe passou despercebido: quem assinava a matéria era um tal de Alex Bernstein.
Para alguns, por outro lado, a matéria falava sobre um crioulo - ah, tinha que ser preto mesmo - covarde que encheu a cara no bar e caiu de bêbado na rua. Ora, se esse vagabundo egoísta tivesse ficado em casa cuidando dos filhos, não haveria essa tragédia. Muitos desses cidadãos de bem foram ao enterro. Curiosos, precisavam se sentir ainda mais revoltados com a negligência do pai; precisavam ver quem eram as pobres criancinhas desamparadas. Nem foi necessário apontar quem eram os órfãos. Três pontinhos pretos se destacavam, abraçados como se dividissem o espaço de uma jangada minúscula que navegava por um mar de pessoas brancas.
Naquele mesmo dia, Ayana reparou que não era apenas a cor de sua pele que a diferenciava. Ao contrário dos irmãos, ela não chorava porque agora precisava permanecer forte para cuidar da família (que depois de alguns meses iria se separar). Como parecia menos abalada, foi a única a receber a maioria das condolências. Muitas pessoas sussurravam que ela era uma menina muito corajosa. E ela ficava se perguntando: "Quem é essa pessoa me abraçando? Será que ela me conhece pra dizer que eu sou corajosa?"
Ayana repetiu em pensamento a frase que se tornaria uma chave para destrancá-la de um passado que não trazia boas recordações: "Papai disse que não há problema em ser diferente". Em seguida, voltou a prestar atenção no que Alex dizia.
- As pessoas são cruéis, Ayana. Às vezes porque não conhecem algo novo e esse algo novo as assusta, às vezes porque são tristes demais com a vida que tem e a única coisa que as consola e fazer alguém se sentir tão triste quanto elas.
A garota não entendeu a segunda parte, talvez porque não tivesse dimensão da crueldade humana. Como seria possível alguém se sentir bem ao fazer outras pessoas ficarem tristes? Quando Ayana estava triste e via que os irmãos também estavam tristes, logo ela dava um jeito de começar uma brincadeira. Foi assim que ela começou a brincar de super-heróis, já que as brincadeiras "de meninas" traziam recordações de sua mãe.
Em contrapartida, super-heróis poderiam ser tão fortes quanto Deus, por isso não havia nada que eles não pudessem fazer. Ninguém que eles não pudessem salvar. Ao final da brincadeira, exaustos de voar pelo pátio do orfanato, os três se deitavam na grama para tomar fôlego. Como pequenas gotas que caem para anunciar a chuva, Ayana se dava conta de que havia felicidade. Assim como a chuva, não era preciso entender de onde ela surgia... bastava sentir na pele.
Agora, contudo, ela estava convencida de que a felicidade surgia a partir das brincadeiras. Era essa orientação que ela, como uma futura profetisa, daria para todas aquelas pessoas tristes que só transmitiam mais tristeza. Antes de ela ter a oportunidade de perguntar onde encontraria essas pessoas, seu pai prosseguiu.
- Mas você não deve deixar isso te desanimar ou chatear. Quando a oferecerem essas coisas, você oferece um sorriso ou uma palavra de carinho. Não podemos deixar que controlem o que sentimos, você entende?
Ela levantou o rosto com um sorriso largo e os olhos pretos brilhando como sapatos engraxados.
- Eu vou chamar elas pra brincar comigo, papai! Eu sempre fico feliz quando tô brincando!