And I run to the open

'cause the Rain is my friend

A interrupção de Abáusú quando Wakai virou-se para ir embora foi certa surpresa, mas esperada. A guaianá tinha anseio que ele a parasse, que mudasse de ideia e quisesse fazer algo para evitar a batalha iminente. Felizmente suas preces foram atendidas, e ela voltou a olhar para ele, sem conseguir disfarçar o alívio em seu rosto. O tupinambá ainda mantinha a expressão séria, que podia ser notada mesmo que não houvesse sobrancelha para franzir. Quando preocupado, ele tinha uma mania de mexer com a língua por dentro da boca, onda localizava o seu metara, como era costume.

-Sim, os espíritos podem ajudar Wakai e Abáusú nessa difícil missão. É preciso que eu me conecte com eles, e peça ao ingraê que empreste sua sabedoria. - Wakai mordeu o lábio inferior, pensativa. A forma mais facil que conseguia pensar em terminar com a batalha antes de começar era neutralizar o líder principal, ou seja, a irmã de Abáusú. Não podia falar em voz alta, pois a chance de afastar o guerreiro de si com isso era muito grande. - O conhecimento é nosso aliado, então eu preciso saber... Qual o motivo de vingança que sua irmã tem com a tribo que será atacada? Abáusú sabe dizer? - Aguardaria a resposta, mas se ele não soubesse talvez os espíritos lhe contassem. A primeira parte do plano consistia em deitar e conectar-se com o mundo dos espíritos através dos sonhos, solicitando ao ingraê que lhe emprestasse o conhecimento do futuro e, assim, traçar um plano logo pela manhã. Contudo, talvez, antes de deitar, Wakai quisesse aproveitar da companhia de Abáusú mais uma vez...

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Por mais que fosse a vontade de aproveitar do calor do corpo de Abáusú durante pelo menos parte da noite, a urgência do assunto requeria que Wakai controlasse ao máximo seus desejos carnais. Cada aproximação do tupinambá seu corpo estremecia, e a cada toque era como seu coração sangrasse. Também sentia saudades, queria estar com ele, aproveitar o pouco tempo que passam juntos... Contudo, nesta noite, precisava estar concentrada para encontrar o gavião. Assim, ela refutou toda e qualquer tentativa.

Tão logo adormeceu, o sonho já começou, ou assim lhe pareceu. Andava entre as árvores de uma floresta negra, a lua iluminando o caminho, ainda que uma tempestade estivesse se aproximando. Um dos raios atingiu uma grande árvore, que incandescia instantaneamente, levando as demais a arder em seguida. A floresta, de maneira muito rápida, era consumida pelo fogo. Contudo, Wakai não sentia medo: ela própria não estava em perigo.

Assim que despertou, ela logo começou a se questionar se a árvore era Ubatã e as outras seriam sua aldeia. Ela própria estava distante nesse momento, será que o inimigo tinha aproveitado para atacar logo? Abáusú não saberia, ou estaria ali para segurá-la? Estava levemente suada e ofegante. Tentando não acordar Abáusú, Wakai levantou e foi para a entrada da caverna, olhando para o céu, repassando todo o sonho em sua cabeça, para melhor compreendê-lo.

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Wakai olhava para cima, tendo vislumbres do céu azul e claro entre as árvores de copas altas. Ouvia o canto matinal dos passarinhos, mas estava distraída demais para apreciá-los devidamente. Os espíritos foram bons com ela naquela noite, enviando um sonho cheio de significados que a guiariam nas próximas decisões. Sabia que a interpretação de que a árvore seria Ubatã era simplória e superficial demais, então aproveitou os minutos antes de Abáusú despertar para refletir mais sobre as imagens que ainda tinha fortemente gravadas na memória.

Tentou inverter a situação, olhar de uma forma que não fosse sua aldeia que estivesse sob a tempestade. Imediatamente pensou em Emarã, e que tudo havia começado com ele e a doença por ele provocada em Ubatã. Sem isso, sua aldeia não teria sido escolhido ou ameaçada. A princípio tinha pensado que a irmã de Abáusú que perseguia seu povo por algum motivo específico, mas afinal era apenas uma consequência dos feitos de Emarã. Sim... A árvore atingida, afinal, era ele. Não era necessário que toda a tribo tupinambá fosse prejudicada ou apagada, bastava desestabilizar a sua árvore central.

Sua concentração foi quebrada com o toque de Abáusú em sua cintura. Wakai sorriu, acariciando a mão do tupinambá. O início da noite havia sido doloroso para ambos, mas imaginava que havia sido ainda pior para ele, afinal, Wakai sabia o que tinha conseguido com a privação. Ele não, embora talvez já tivesse entendido a essa altura. O cumprimentou com um bom dia seguido de um beijo rápido.

-Os espíritos visitaram os sonhos de Wakai durante a noite. Já sei o que para ser feito. Preciso ir à mata buscar algumas ervas, principalmente a erva mate. - Não sabia se poderia dizer mais a Abáusú sobre seus planos, afinal, até que ponto ele iria até ser considerado um traidor? Não queria trazer problemas para ele em sua tribo, apenas proteger seu próprio povo. Por isso precisava da erva mate, a fim de fazer uma viagem xamânica e comunicar-se com os seres das outras realidades, a fim de sequestrar o espírito de Emarã. Só não sabia o quanto isso seria efetivo, pois jamais o tinha feito. Sua segunda opção era simples, embora mais difícil de ser executada: faria veneno para o grande karaíba.

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A manhã foi tranquila e -agradável na companhia de Abáusú. Em sua inocência, ele ajudou Wakai a buscar todas as ervas que precisava, ainda que não soubesse qual o seu objetivo. Momentos como aqueles eram raros e bons. Enquanto apanhavam o que precisava, quase esqueceu de todos os problemas e tudo o que teria que enfrentar dali para frente. Abáusú, apenas de um homem bem grande e musculoso (tal como bons guerreiros eram), era gentil e paciente, além de muito apaixonado pela guianá, tal como ela era por ele. Um casal bem improvável. Proibido.

Wakai preparava a erva mate para iniciar a viagem xamânica, concentrada, quando foi questionada por Abáusú. Só então notou como o rosto dele estava com uma expressão preocupada e reflexiva, talvez temesse pelo que pudesse ser feito. Até então, Wakai tinha sido grata por ele nada perguntar, mas sabia que em algum momento isto acabria acontecendo. Respirou fundo. Não queria mentir. Não podia.

-Farei uma viagem xamânica, também preciso consultar o Gavião sobre uma questão que preciso dele como guia. - ela desviou o olhar da erva que amassava, franzindo as sobrancelhas, séria. - O que pretendo fazer não coloca em risco a aldeia de Abáusú. Ainda assim, é perigoso que saiba os detalhes. Se fizer questão, Wakai conta sobre o que fará. Só não sei quais consequências terão ao saber. A escolha é sua. - estava mesmo muito aberta sobre a questão. Avaliou que era melhor não contar, mas entendia que Abáusú tinha seu direito de saber, afinal, estava ajudando-a em tudo.

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Wakai suspirou com a resposta de seu amado. Ele tinha razão, já haveriam consequências. Estava fazendo aquilo por ela, e de certo que em sua aldeia já deram por falta de um de seus principais guerreiros, ou assim Wakai imaginava. Contudo, tinha inda receio que a tentasse impedir de realizar o que pretendia. Devia ser honesta. Não conseguiria fazer o contrário, de qualquer forma.

-Para minha aldeia ser um bom alvo, foi preciso derrubar nossa principal árvore. Preciso derrubar a principal de sua aldeia, se quiser evitar a batalha. É a melhor forma, a mais segura e a que terá menor perda para ambos os lados. - passou a mão em seu rosto, de modo carinhoso. Sentiu uma espécie de choque ao tocá-lo. Seu corpo ainda ansiava pelo de Abáusú, desesperadamente. Mas deveria esperar mais um pouco. Tinha assuntos urgentes que não podiam ser adiados. Embora doloroso, aquilo poderia.


Não deu detalhes a ele, era muito para explicar em pouco tempo. Além do mais, Abáusú não havia exigido qualquer explicação. Ficou ao seu lado, observando, em silêncio. Vez ou outra Wakai desviava o olhar em sua direção, mas estava concentrada demais para conversar, então apenas dava um leve sorriso. Logo que a bebida estava preparada, ela sentou e começou os cânticos, bebericando a solução em tempos específicos. Lentamente, começava a entrar em transe, tendo apenas uma noção do que acontecia ao seu redor, sua mente cada vez mais sonolenta, mais distante, mais longe de Abáusú. Estava na hora.

Não sentiu o baque do corpo no chão, mas sabia que tinha deitado pesadamente no chão. Contudo, sua mente já não estava em seu corpo: o novo ambiente anunciava isso. O local era muito escuro, embora as cores se tornassem mais vibrantes, em um contraste que deixaria qualquer um surpreso e maravilhado. O Gavião, como de costume, estaria em um local mais alto. Assim que se viu ali, já começou a caminhada, sempre subindo, sem parar. Ele não a estava aguardando, como de costume. Wakai o chamou tantas vezes que perdeu as contas e começou a sentir uma pontada de desespero. E se não a respondesse? O que faria?

Para seu alívio, ouviu o pio alto do gavião, a princípio distante, mas aproximando-se cada vez mais. Logo ele estaria pousado em um galho não muito distante. Tão logo o viu, Wakai se aproximou o máximo que conseguia.

-Mais uma vez necessito de sua sabedoria, ingraé. Preciso sequestrar um espírito para salvar a minha aldeia. Sua proteção e guia é indispensável para Wakai nessa jornada.

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