Ato Vl: Fragmentados

—Esta tudo bem... Disse o chefe. ...tenham um bom dia, senhores.

Era visível para os magos que ambos mal sabiam descrever o que estavam fazendo ali, ou porque razão acabaram parando nesse lugar.
Só depois que eles sairam puderam ouvir uma risada cínica que parecia vir de dentro do banheiro do quarto.

A porta estava sendo aberta por dentro e visivelmente um sujeito já conhecido deles saia dali, refreando a risada para uma expressão mais séria.


Escorpião: —Pelo visto vocês são a melhor Cabala para enfrentar o problema... Que bom! Mandaram os dois peões da tecnocracia sem levantarem suspeitas por hora...Como esses adormecidos são ridículos e controlados por essa maldita tecnocracia! Pelo menos vocês se livraram do ataque inicial deles graças a mim...

Ele falava e parava do lado da porta, esperando que Ronald e Akon reagissem.

Do lado de fora do lugar, King terminava de se livrar das provas do delito do cyborg.

A pena que eu senti daqueles dois se multiplicou por dez quando o "tira bom" respondeu a Akon com um patético "está tudo bem", e os dois se puseram a caminho. Tive até vontade de chamá-los de volta com uma desculpa qualquer para ver se, com mais tempo, Akon não conseguiria quebrar aquela manipulação odiosa. Mas é óbvio que não fiz nada. Já tínhamos encrenca suficiente para nos preocuparmos, e lidar com duas marionetes só iria atrair mais a atenção dos inimigos que as controlava.

E, falando em inimigos… Um que consegue se teletransportar para onde quiser apareceu em nosso banheiro! Foi nessa mesma hora que King surgiu, já sem o lençol onde havia guardado as peças retiradas do ciborgue, e exclamou alguma coisa que eu não entendi.

Não tive preocupação de disfarçar meu desagrado quando vi o Escorpião. Fui até o frigobar e peguei uma barra de chocolate enquanto escutava as palavras dele. Sentei-me na cama no momento em que King, com a mesma expressão de desagrado que eu usava, fazia um comentário irônico sobre os motivos que tinham trazido o Escorpião até ali. Em seguida, eu disse :

- Graças a você…? O que foi que você fez para nos ajudar com aqueles dois infelizes? Aliás, que ajuda você acha que nos deu até agora? Nos avisou de um possível ataque, mas não apareceu para lutar contra o milico. Belo auxílio,  hein?! E ainda tentou tirar proveito das nossas ações para invadir um reino onde você não foi convidado a entrar…  

Mordi o chocolate e refleti que eu estava sendo apenas provocativo. King, mesmo de maneira irônica, induziu o Escorpião a ir logo ao assunto que o tinha trazido até nós. Então, parei de falar e fiquei encarando o Escorpião de modo contrariado.

A ironia de King sobre ele não ser um mero entregador divertiu ainda mais o Escorpião, mas ele levantou as mãos como alguém que era rendido, pelas palavras especialmente quando falaram sobre ele não ter ajudado contra o militar e sobre seu desprezo pelos adormecidos.

—Hey, hey! Uma questão de cada vez, por favor! Óbvio que eu estava perto o tempo todo, usei a Umbra como atalho assim como vocês... Aliás antes disso eu reduzi a espessura da película para vocês poderem lutar com ele perto da sinagoga, acharam que foi ele quem fez isso? Claro que eu me interessei pelo reino feérico que você esta conectado, Ronald! Você também não se interessou...

Depois volto-se para Akon baixando as mãos e terminou.

—Sim...Há outra Cabala, não sei dizer que por arrogância estou revelando isso, apenas estou... Mas eles não são hábeis como vocês... E os que não são novatos são perigosos entre eles... Uma delas é a jovem que você sentiu que iria despertar. Podemos falar dela depois... Por hora eu sugiro que me escutem... Alertei vocês cinco do avanço dos tecnocratas..., mas só vocês três escaparam... Eu creio que vocês devem ter um plano. Não?

Uma coisa boa de fazer reunião telepaticamente é "falar" enquanto mastiga chocolate com amendoim… Eu não entendia nada de Mente, então não sabia se as palavras que eu pensava transmitiam a irritação profunda que eu estava sentindo naquele momento. De qualquer forma, o que eu "falei" em pensamento foi: "Olha, eu, pelo menos, não pensei em plano de ação nenhum. Se vocês tiverem algum, me digam".

Fiz uma pausa para King se manifestar, já que ele podia ter alguma ideia do que fazer. Terminei de comer, deixei para os outros a tarefa de tratar sobre planos de ação com o sujeito irritante e, quando a reunião estava no fim, avisei em pensamento: "O que eu acho das respostas desse aí, vou falar na cara dele"!

- Escuta aqui, ô, Rabo da Mantícora: enfraquecer a Película fortaleceu aquelas coisas que nos atacaram e ainda criou o risco de um colapso da Película em larga escala… Consegui restabelecer o equilíbrio, mas, se eu tivesse falhado, nem quero pensar no que seria! E a conexão que eu tenho com aquele Reino é física, espiritual e emocional. Nada a ver com a bisbilhotice de alguém que se diz louco e que, por isso mesmo, tem motivações para lá de suspeitas!  

Parei de falar com expressão visivelmente mau humorada!

—Oh, calma vocês dois!

O escorpião levatava as mãos acuado pelas palavras de Ronald e aparentemente constrangido pelas de King.

—Entendam... eu avisei vocês que os "homens de preto" estavam vindo, podem questionar minha ousadia, mas pelo menos vocês estão vivos e bem, não é?Ao contrário da garota e do seu amigo hacker, o Clube dos Cinco de vocês se tornou apenas três e quase nenhum...Se eu não tivesse ajudado... Agora não pode querer me culpar, por me interessar pela bela Nathicana, Ronald... Afinal não é isso que você também buscava? Se acham que podem se virar sem mim, digam logo... Eu vou embora e deixo vocês à sua prórpria sorte... Igual seus outros dois membros da Cabala que se afastaram. Que acham?

Falava ainda de mãos levantadas.

King estava claramente blefando quando disse que tínhamos um plano, e é óbvio que eu não iria estragar o blefe. Respondi casualmente, antes que o Escorpião falasse:

- Peguei o chocolate ali no frigobar mesmo. Dá bem para tapear a fome.

Depois, o Escorpião fez seu discurso contemporizador, mas sem oferecer nenhuma ajuda concreta. E ainda continuou a falar como se o interesse dele pelo Reino da minha avó devesse ser encarado como uma curiosidade insuspeita, mesmo sendo ele um Desaurido que, ainda por cima, causou problemas para a Aliança no passado! Nada disso contribuiu para diminuir minha irritação, mas fiz um esforço para responder de modo que fosse produtivo, não apenas provocador.

- Até agora, a ajuda que você deu foi um alerta de ataque tão em cima da hora que nem tivemos tempo de nos preparar. Depois, você fez uma aposta de alto risco, afinar a Película, e ficou nos bastidores enquanto nós encaramos a briga sozinhos!

Suspirei com impaciência e sacudi levemente a cabeça antes de prosseguir.

- Se acha que pode nos auxiliar com nosso plano, diga de forma concreta que tipo de ajuda pode nos dar daqui em diante. Informação? Ajuda em combate? Conhece um esconderijo? Diga aí para a gente avaliar se dá para confiar em você ou não.

Olhei para ele tentando não afetar irritação, sendo que me eximi de mencionar Nathicana novamente para conseguir esse resultado.

Ainda de mãos erguidas a expressão de recuo muda para  um sorriso meio cínico ao ouvir Akon, o Escorpião baixava lentamente as mãos enquanto respondia primeiramente à Ronald

— Sim...conheço um escondijo e certamente eu sabia que havia um alto risco...E sim, sem você haveria... mas eu contava com sua mediunidade para resolver tudo...E preparação é a minha área de atuação...A de vocês é reação, velocidade... Juventude improvisada... De qualquer forma eu falhei... Além do "Clube dos Cinco" ter virado um "Clube de Três"... vocês não trouxeram a garota.

Apoiando as costas na porta, ele se voltava para King, enquanto esse voltava de pegar a comida da geladeira e comentava.

— Você tem sido perseguido há tempos, hermético... mas eles queriam vocês agora, justamente para encontrarem a garota, a jovem Alice...Eu estranhei que ela ainda não esta com vocês, pelos meus cálculos vocês já deveriam tê-la encontrado.

Ele baixava a cabeça tentando entender e em seguida continua.

—Pela forma como me chamaram de "rabo de Manticora" sabem da minha cabala, a Manticora, talvez não saibam que ela foi despedaçada...Mas antes disso descobrirmos alguns planos de um grupo de estudos paranormais em uma facção da Tecnocracia chamada "Engenheiros do Vácuo" que pensam que enquanto Ronald é a chave e o portal para o plano da Nathicana...Alice seria a pessoa que conseguiria atravessar o caminho e eles a querem...

Então , depois dessas palavras , ouvindo as respostas dos três jovens magos, Nick voltou a olha-los e dessa vez com uma expressão de medo que tentava controlar.

—Eu achei que Alice poderia ajudar, mas eles viriam atrás de vocês primeiro, tentei avisar o mais rápido que eu pude...  

O Escorpião mudou sua postura defensiva para uma atitude meio cínica ao nos responder. Do que ele disse diretamente para mim, a única coisa útil (se fosse verdade…) era que ele conhecia um esconderijo. Depois, fiquei desconcertado, pensando: "Quem… aquela garota!?".

Sim, ele estava mesmo falando de Alice! Ela estava na iminência do Despertar, conforme Akon percebeu logo, mas, provavelmente por causa do choque causado pela experiência com aquela escuridão sobrenatural e sufocante, fechou-se para essa possibilidade, e tanto que eu cheguei a sentir a mudança intuitivamente. Ainda assim, eu a vi cair nos braços da Tecnocracia, então era provável mesmo que ela ainda fosse capaz dessa transcendência, no final das contas. E nós a deixamos escorregar por entre os dedos…

Mas fui arrancado dessas reflexões quando o Escorpião comentou sobre os tais "Engenheiros do Vácuo" e o interesse dessa facção no Reino da Divina Nathicana, o que fez eu me levantar da cama abruptamente! Fiquei ouvindo o restante das respostas em pé, sem querer acreditar. Quando ele terminou de falar, tive a impressão de ver algo de medo em seu rosto, e respondi:

- Não faz 15 minutos que dois policiais com a mente embotada por magia bateram à nossa porta. Então, acho que o melhor é irmos logo para o tal esconderijo que você diz conhecer para planejarmos o resgate da Alice.

Ronald sentiu uma preocupação grande com Alice, apesar de nenhum dos quatro comentarem a ausência de dois membros do Clube dos Cinco que se desfez logo de cara com a perseguição recente que sofreram. Ninguém entendia exatamente o aviso que o Escorpião deu, sequer se esse aviso era de fato realmente para ajuda-los...

Mas era fato que a cabala perdeu dois membros e que a amiga da Verbena que fazia parte grupo deles ainda estava viva. Mesmo tendo sido pega pela Tecnocracia, era algo que não poderia dizer dos outros dois que desapareceram.

Os quatro magos caminharam pela porta, três deles ouvindo e ignorando os protestos de King e sua visão de simplesmente sacrificar Alice como forma de proteção...



Enquanto caminhavam naquele escuro e mudo momento de outono, nuvens baixas amontoavam-se opressivamente no céu, eles percorriam um trecho de campo singularmente triste que recordava sutilmente a forma como abandoraram o local onde enfrentaram o militar, e finalmente encontraram quando as sombras da noite se avizinhavam, à vista da melancólica Casa Mac´llister.

Não sabiam como foi – mas, ao primeiro olhar que lançaram ao edifício, uma sensação de insuportável angústia invadiu o espírito dos três jovens magos universitários. iIsuportável, pois tal sensação não foi aliviada por nada desse sentimento quase agradável as palavras cheias de poesia do Escorpião, que se inclinou de forma graciosa enquanto esticava sua mão ao lado deles com um sorriso com o qual falava da beleza da casa em que morava.
O que contrastava diretamente com o que Akon, Ronald e King visivelmente notavam.

A mente de todos ordinariamente acolheu mesmo diante da fala do Escorpião as imagens mais cruéis por sua desolação e seu horror em sua arquitetura decadente.

Até a casa a paisagem até a soleira, assim como as notórias paredes frias com suas janelas paradas como olhos vidrados – para algumas moitas de juncos – e para uns troncos alvacentos de árvores mortas geravam uma enorme depressão mental.

Ainda em seu cinismo cada vez menor e menos defensivo ele comentava.

—Eu sei... Desculpem a falta de conservação. Eu fiquei preso nessa, sozinho, em um natal em 1990...meus pais me esqueceram...Tive de aprender a me defender...E não gosto muito de ficar aqui.