Capítulo 6 - A Corrida pelo Cajado de Avandor

A porta tinha sido aberta. Alguns marujos olhavam com assombro para o que tinha acontecido. Mesmo depois de terem passado dezenas de dias trancafiados na Ilha de Ferro não era a todo o momento em que se via uma porta sendo aberta daquela maneira. Algeon estava certo em seus pensamentos: aquilo não foi um ritual de sacrifício. Emelina Ashwood poderia ter tido a vida poupada.

O criado-de-bordo acatou a ordem de Barbarossa e foi buscar pelo segundo grupo de expedição. A demora foi tão grande quanto à expectativa em ver o que viria pela frente. Três horas depois o grupo então liderado pelo anão Throlf "Barba Salgada" retornou. Eles tinham ido para o outro lado da ilha, porém não encontraram nada além de pequenas grutas vazias e símbolos estranhos nas rochas.  Duas tochas foram acesas em meio ao extenso bando de piratas, e como se fossem uma só massa compacta eles adentraram a porta em busca da glória prometida. O velho eremita foi com eles, e ficou a seu encargo carregar o corpo desfalecido de Emelina.

* * *

O Capitão Raggeti não estava tentado a aceitar a sugestão de Lyed. Ele usou o argumento de que já tinha "perdido" quatro marujos por os deixarem tomando conta do Marlin Negro e da Senhora da Maré Profunda, e que não poderia se livrar de mais três, incluindo na sua conta Thelarq e Jake.

- Não posso permitir isso para um trabalho tão simples! Apenas um de vocês basta para fazer o reconhecimento do Desmorto. Você que ainda não se manifestou...Thelarq é o seu nome, marujo? Vá até onde está ancorado o navio de guerra e veja se trata da embarcação do tal Capitão Sinistro. O resto irá me acompanhar!

Thelarq pediu orientações a Jake sobre o caminho mais rápido para se chegar até seu destino, e depois saiu às pressas dizendo aos outros que não demoraria. A tripulação do Marlin Negro já estava na praia, e o experiente contramestre do navio encontrou as pegadas dos marujos da caravela que haviam passado por ali. Havia pegadas de pelo menos vinte pessoas diferentes, e Raggeti mostrou-se certo em não querer ter se livrado de mais homens. Ainda na praia as pegadas se dividiam em lados opostos, mas o rastro de sangue que havia os levou até a entrada de uma caverna.

- Veja, capitão! – Royce parou o grupo logo quando eles andaram alguns metros no interior da caverna. Havia uma poça de sangue no chão, e havia uma abertura na parede bem ao lado. A abertura era um pouco menor do que o tamanho de uma porta comum, e perfeitamente alinhada e de ângulos retos. Frac podia testemunhar que os rastros seguiam através do vão, assim como as gotas de sangue.

* * *

Os comandados de Barbarossa avançavam com cautela. O corredor deu lugar a uma antecâmara espaçosa o suficiente para acomodar todos os marujos. Uma abertura de dois metros de largura dava para a câmara seguinte, pelo menos três vezes maior do que a antecâmara. E havia pessoas ali.

- Apaguem as tochas! – sussurrou o imediato.

A antecâmara agora estava às escuras, mas a câmara maior era iluminada por feixes de luz que entravam por um buraco no teto aberto ao céu. As pessoas que estavam ali usavam vestes de piratas, com armas de piratas e bicornes de piratas. Eles estavam de costas para a tripulação de Barbarossa e estavam envolta de uma elevação de terra. Os raios solares recaíam exatamente sobre esta parte elevada, onde um único ser iluminado pelo sol poente se destacava.  Ao invés das esfarrapadas vestes que os piratas usavam, ele dava lugar a um traje ricamente bordado em vermelho escuro e em amarelo-ouro, com a gola e as mangas sendo de algodão, e era o único de seu bando a usar um tricorne. A bainha da espada era feita de couro e estava presa ao cinto, com a arma devidamente embainhada. Mas o que mais chamava a atenção era o seu rosto. No lugar de uma pele saudável havia um rosto decomposto e consumido pelo tempo, pelos vermes e pela morte.

Ele estava parado e assim como os demais toda a sua atenção parecia voltada ao único objeto que flutuava a alguns metros acima dele: um cajado. Não dava para precisar qual material era feito o cajado, mas o seu tom azul-claro era magnífico e penetrante, e parecia emitir um leve brilho próprio. Ele flutuava no ar sem nenhum tipo de suspensão e longe do alcance dos braços dos piratas.

De repente um fluxo de sensações passou por Algeon, e ele quase desmaiou de tontura. O darfelano teve que ajudá-lo a não cair. A mente do elfo do mar havia sido clareada num lapso divino lançado por seu deus. Aquele era o item que o Senhor do Fundo do Mar queria que fosse encontrado e trazido à sua presença. O Cajado de Arvandor. O mesmo cajado que ajudou o Príncipe Golfinho a firmar o seu império no oceano verde e raso de Arvandor, o chamado Mar Faiscante, onde golfinhos e baleias servem aos elfos marinhos como companheiros e montarias, e onde um palácio de coral magnífico reside no fundo do mar.

Algeon não sabia quem eram aqueles piratas e por que estavam parados observando o cajado, mas uma coisa era certa para ele: o cajado não podia cair em mãos erradas.

* * *

- Não devia ter deixado o garoto na outra embarcação – queixou-se Raggeti. A tripulação do Marlin Negro ainda estava em frente da abertura e ela aguardava as ordens de seu capitão. Ele se virou para Jake e Lyed. – Vocês dois parecem furtivo o bastante, heim? Escutem, quero que os dois vão na frente e vejam o que tem adiante. Sejam discretos ou os darei de fonte alimentar para as sanguessugas que Frac mantém conservadas em cativeiro.

Capitão Barbarossa encarou seu imediato em busca de algum auxílio, mas Hendrik encarou de volta o seu capitão sem arranjar palavras para dizer. Beagan parecia aflito, e Hedrergor com sede por ação. Edward Lancaster se limitou a uma pergunta sussurrada à Barbarossa:

- Temos ordem para atacar?

A decisão não era fácil de ser tomada. O grupo inimigo estava esperando por algo acontecer, isto era claro em sua atitude passiva. Talvez um ou outro pudesse até pensar que o grupo inimigo estivesse paralisado por magia ou maldição, mas um observador atento veria que esta hipótese era inválida. Por vezes um dos piratas rivais fazia algum movimento discreto de seu corpo, como girando o seu rosto ou passando a mão levemente no punho de sua espada embainhada.  

* * *

O corredor era estreito, não dando espaço confortável para mais do que uma pessoa passar por ele. Lyed tomou a frente de Jake e seguiu adiante. Os dois tentavam fazer o menor ruído possível enquanto caminhavam, e como não havia nenhuma fonte de luz, eles usavam suas mãos para tatear à parede e não esbarrar por acidente nela. Lyed percebeu que chegou ao fim do corredor quando não havia mais parede reta para tatear, pois ela agora se abria para alguma câmara.  

A primeira coisa que, tanto Lyed quanto Jake, viram foram vultos que se acotovelavam a sua frente. Eles estavam de costas, mas bem próximos dos dois. Um dos vultos negros chegou a se virar para olhar em direção do corredor, mas como estava bastante escuro o lugar, nada enxergou. O vulto mais próximo estava a menos de três metros de Lyed, e ele carregava um corpo em seus braços. Seriam eles a tripulação de Barbarossa, capitão da Senhora da Maré Profunda?

Havia um grupo razoável de pessoas ali, na câmara. Eles estavam tão quietos quanto Lyed e Jake, e certamente também estavam à espreita. Lyed observou que havia uma nova câmara depois da primeira, mas de proporções maiores e com um foco iluminado por um feixe de luz que recaía sobre algum ponto da câmara. A claridade desse feixe de luz não era o suficiente para iluminar a ante-câmara e muito menos o corredor em que estavam posicionados os dois subordinados de Raggeti. Inclusive com toda a escuridão daquele lugar, não seria tão difícil entrar na ante-câmara e tentar se passar por mais um daquele bando...

Num piscar de olhos, Jake e Lyed se misturaram com os piratas que estavam abrigados na antecâmara, sem, claro, que nenhum deles percebesse. A atenção daquele bando de piratas estava voltada para o que havia à frente deles, na câmara principal iluminada pelos feixes de luz, e a maioria deles se encolhia contra as paredes da gruta e observavam em silêncio seja lá o que estivesse acontecendo.

O último dos marujos – àquele que transportava o corpo desfalecido - era notoriamente uma pessoa idosa, com a sua espessa barba branca sendo perceptível mesmo diante da falta de claridade na antecâmara. Apesar de se tratar de um velho, ele não fazia forças para segurar o corpo em seus braços ressequidos e encarquilhados. Lyed fez uma aproximação como quem não quer nada a fim de observar quem era a pessoa morta. A primeira coisa que o malandro atestou foi que pelo contorno de suas curvas, aquele corpo só podia se tratar de fato de uma mulher. Seria ela a sua amada? Um brilho escarlate de sangue saía de seu pescoço e respingava no chão, mas para o alívio de Lyed esta mulher tinha cabelos longos escuros, enquanto sua amada possuía cabelos mais curtos e loiros. Ele não sabia quem era aquela mulher, mas naquele momento isso pouco importava. Aideen ainda podia estar viva, e uma chama de esperança se avivou em seu coração.

Enquanto Lyed se preocupava com outras coisas, Jake se enfiou no meio dos piratas quase como que pedindo licença para avançar e procurou por um ângulo bom para ver o que estava acontecendo na câmara principal. A primeira coisa que ele viu – talvez com desânimo – era que existia mais um bando inteiro de piratas ali. Um monte de terra se erguia na face norte, formando uma espécie de outeiro com três ou quatro metros de altura, com uma única figura de pé em seu cume. Era uma figura imponente, intimidadora e majestosa.  Quando Lyed alcançou Jake e se pôs ao seu lado, ele reconheceu àquela figura de imediato e a chama de esperança que havia se acendido em seu âmago voltou a se apagar. Aquele era o Capitão Sinistro!

Os feixes avermelhados de luz do pôr-do-sol recaíam exatamente sobre ele através de uma fissura no teto da caverna. O Capitão Sinistro estava parado, com a espada embainhada, observando um cajado que flutuava a alguns metros acima de sua cabeça, no momento longe de seu alcance. O cajado flutuava sem nenhuma suspensão visível; era como se a magia do lugar o sustentasse no ar. O cajado emitia um brilho próprio em tom azul-claro e parecia completamente fascinante à primeira vista. A tripulação do Desmorto rodeava o outeiro de terra, todos também com a atenção no cajado e, é claro, em seu capitão.

O silêncio se quebrou quando a voz do Capitão Sinistro ressoou na câmara principal, também se fazendo com clareza na antecâmara onde os piratas de Barbarossa estavam escondidos. A voz do capitão era profunda e grave, vil e discursiva, cativante e perturbadora, tudo ao mesmo tempo.  Ele apontou para a fissura na parede e discursou para seus tripulantes.

- A maior das estrelas está se pondo no oeste e o brilho pálido da Senhora de Prata ocupará seu posto de direito no Mar da Noite. Nesse momento os nossos irmãos piratas que navegam em navios voadores pelas Lágrimas de Selûne estarão torcendo por nós, e os nossos desejos e esforços serão atendidos. Quando a noite cair a maior das relíquias do mundo marítimo será nossa, e então nos transformaremos no centro de poder do Mar Interior e do Mar das Estrelas Cadentes!

Apesar de sua tripulação ser formada por mortos-vivos, a excitação demonstrada pelos comandados do Capitão Sinistro era quase tão palpável quanto à rocha da caverna. Eles não eram monstros desprovidos de inteligência e vontades e que serviam com o propósito apenas de ser uma arma a ser usada por Sinistro. Eles eram indivíduos com pensamentos próprios e movidos a desejos. O primeiro raio solar se dissipou, e isso significava que a tripulação de Barbarossa não tinha muito tempo para agir.

O beijo frio da lâmina de Barbarossa fez o seu imediato despertar do vislumbre ao qual ele parecia estar acometido.

- Capitão, esse cajado deve valer muito ouro... - sussurrava Hendrik sem esconder sua cobiça. - Se puséssemos a mão nele ficaríamos ricos do dia para a noite. Não foi para isso que viemos até esta ilha? Por riquezas? Esta parece ser uma que vale a pena lutar, mesmo em desvantagem.

Lyed e Jake, misturados com a tripulação de Barbarossa, ouviam a conversa.