Markus van de Vlammen (Sayd)

Amsterdam, segunda-feira, 20 de Maio de 1940.


Zeeland, a última resistência dos Países Baixos à Wehrmacht, havia caído. A Alemanha completava a ocupação, nada mais restava aos holandeses, além da esperança e fé de sobreviver sob o domínio nazista.

O sol da primavera brilhava no horizonte logo pelo começo da manhã, maio na Holanda era primavera, mas o desabrochar florido tradicional dos Países Baixos não tinha qualquer beleza esse ano. Rotterdam havia sido bombardeada, totalmente destruída, enquanto muitos dos seus desabrigados buscavam socorro em Amsterdam.


As ruas estavam silenciosas, mesmo com o tempo belíssimo, um clima sombrio impregnava o ar.

A semana anterior havia sido de festividades, os colaboradores e simpatizantes dos nazistas fizeram uma grande recepção para seus "salvadores", com a promessa de uma união entre Holanda e Alemão, galgando para um futuroso glorioso junto ao Terceiro Reich.

Propagandas estampavam toda a cidade, desde panfletos à cartazes com dizeres em holandês e alemão.

Os temores da comunidade judaica batiam sua porta, dela e dos que ajudavam seus integrantes. Além dos judeus, os ciganos, homossexuais e as Testemunhas de Jeová eram os principais alvos dos preconceitos por parte dos nazistas.


Os pensamentos de Markus van de Vlammen se distanciavam dos projetos acadêmicos. Nesse exato momento era parte de um dos "indesejáveis" dentro do seu próprio país, mas não podia "baixar a guarda", as filhas do seu amigo dependiam dele na mesma proporção do Partido Comunista.

As ordens eram para normalizar as atividades cotidianas, à partir desta segunda-feira, e a última coisa que o mago tentaria era a de chamar atenção indesejada.

A frente da Universiteit van Amsterdam ainda se encontravam algumas carroças, com mantimentos e mudanças, muitas famílias estavam residindo dentro do campus, sendo auxiliados pelos funcionários da instituição, que agora estava à mercê da vontade do Führer e seus subordinados.

Amsterdam, segunda-feira, 20 de Maio de 1940.


Algumas cadeiras estavam vazias, o que era estranho visto o nível de excelência dos alunos, dentre os faltantes dois nomes chamavam a atenção de Markus; Benjamim Horowitz e Guus Gutenberg.

A aula deveria ser ministrada, mesmo com todos os problemas pelos quais os Países Baixos e o próprio mundo passavam, o maior de todos era a conivência e colaboração de uma parcela considerável da população.

Markus ia explicando a evolução da antiga língua egípcia ao copta, seus conhecimentos de egípcio antigo e grego antigo auxiliavam para contextualizar as entranhas gramaticais e pincelar o próprio quadro geográfico.

Não havia sido sua melhor performance como professor, mas estava longe de ser um fracasso, mas havia a justificativa da sua mente estar focada em outros problemas.

Ao término da aula, Markus podia notar questionamentos inerentes no olhar dos seus alunos, que eram dissipados com a entrada de um oficial alemão aplaudindo, deixando rapidamente a sala vazia, com exceção do professor e do Sturmbannführer der Schutzstaffel (Major da Tropa de Proteção).


Sturmbannführer: — Muito bem, muito bem, professor... -tirava a prancheta que trazia presa em uma das axilas enquanto aplaudia, verificando alguma anotação.

Sturmbannführer: — Markus van de Vlammen, acredito que não esteja incomodado de termos uma pequena conversa em alemão, ao menos aqui consta que você é fluente, além de outras dezenas de línguas, é um prazer conhecê-lo.

O sotaque do militar era o Hochdeutsch, facilmente reconhecido pelo professor, era tido como "o alemão perfeito", provavelmente oriundo do norte da Alemanha, algum lugar nos arredores de Hamburgo ou Hannover.

O Major parecia entretido com as anotações, pareciam ser informações sobre o próprio Markus van de Vlammen e dos alunos aos quais ministrava aula, impressionado pelo conhecimento e capacidade do holandês para a área da linguística.

Sturmbannführer: — Vejamos... - pedia licença, somente por educação, sentando na própria cadeira de Markus, para que pudesse utilizar a mesa do professor como apoio para suas anotações, tirando uma caneta de dentro de um dos bolsos para escrever mais algumas coisas.

Sturmbannführer: — Fico feliz que não queira problemas com o Reich, também não queremos com vocês, foi uma pena o que aconteceu com Rotterdam, mas foi necessário para evitar que o mesmo acontecesse com alguma outra bela cidade em uma terra tão linda, não é mesmo...

Parecia divagar, enquanto fazia na lateral da lista de frequência o que parecia ser uma tabela, pelo o que Markus conseguia entender e enxergar, sem parecer curioso.

Sturmbannführer: — Esses 2 alunos, Benjamim Horowitz e Guus Gutenberg, é comum eles faltarem ou hoje foi um caso excepcional? - ia fazendo as anotações devidas em acordo com as respostas de Markus.

Sturmbannführer: — Consta que você também é fluente em russo, apesar de não ser a área em que leciona atualmente. Conhece algum aluno que tenha requisitado algum conhecimento na língua ou auxílio na tradução de algum livro ou material ideologicamente reprovável pela política do Terceiro Reich? - continuava anotando.

Sturmbannführer: — O senhor aceitaria a possibilidade de colaborar com os interesses do Führer, para o próprio benefício da região?

O Sturmbannführer completava sua prancheta com informações de acordo com as respostas do professor Markus van de Vlammen.

Sturmbannführer: — O Manifesto Comunista só foi possível através da participação da mente brilhante de alemães, mas era outra época e não a deformidade que se transformou. - rabiscando e refazendo algumas notas.

Sturmbannführer: — Me refiro a Lenin, Trotsky Luxemburgo, Liebknecht, os que sucederam e hoje são utilizados como estímulo para a desordem pública. - terminava de escrever, rubricando a parte inferior do documento.

O Major coçava os olhos suavemente, enquanto ouvia as alegações do professor holandês sobre o desconforto em adentrar em situações perigosas, balançando com a cabeça como se estivesse compreendendo.

Sturmbannführer: — Não precisa me responder agora, no caso seriam alguns trabalhos de tradução. Deixe amadurecer a ideia e conversamos novamente no futuro, frequentemente estarei pela universidade.

Com um breve sorriso se levantava, ajeitando as dobras da farda, fazendo a saudação nazista e se retirando da sala.

Ao ter a certeza de que estava sozinho, Markus van de Vlammen ofegava, tinha a certeza que não haviam descoberto sobre sua integração ao Partido Comunista, caso contrário estaria tendo uma conversa extremamente diferente e em um local muito menos aconchegante. Se recompunha, reunindo os materiais da aula ministrava e se preparando para ir para casa, nesse dia seu horário era somente pela manhã.

Os pensamentos estavam tão dispersos que demorou para que o hermético percebesse o estranho zumbido. Não estava resfriado ou com algum problema auditivo, apesar da idade, não era isso, era algo que zumbia não em sua mente, mas em seu espírito.

Markus fechava os olhos, se concentrando e captando uma grande energia mágika sendo libertado, junto de sussurros que pareciam vir do mundo espiritual. Alguém estava despertando, tinha a certeza disso.

Mesmo no país ocupado, na situação complexa entre nazistas e comunistas, ele ainda era um mago da Ordem de Hermes, os protocolos deviam ser seguidos, mesmo em tempos sombrios. Uma alma que estivesse despertando, precisava ser protegida, um chamariz de poder atraindo todos ao redor, como um farol costeiro.

O encontro com o Major da SS e as propostas feitas por ele ainda nebulavam os pensamentos de Markus, dada a situação que os Países Baixos e o professor passavam, tendo de usar uma máscara para esconder quem realmente era e suas verdadeiras intenções para o mundo exterior.

Enquanto fumava para descontrair, um zunido sutil surgia, aumentando gradativamente e parecendo não ser percebido por ninguém no campus.

O despertar era como um farol, uma luz que dissipava toda a escuridão ao redor, na qual o mundo adormecido estava submerso, tanto no mundo material como nas outras Camadas da Tellurian. E por isso também um imenso perigo, muitos seres eram capazes de sentir a energia que emanava desse processo, alguns extremamente hostis aos magos.

Markus van de Vlammen, acima de tudo era um mago da Ordem de Hermes, tinha um Protocolo a seguir. Um dos seus deveres era o de localizar e proteger alguém que estivesse despertando.

Ele ia para fora da Universidade, sentando em um banco ao ar livre, se concentrando, enquanto fechava os olhos e dava o último trago no cigarro.

Conseguia sentir o sinal, enquanto sua memória ia percorrendo as ruas de Amsterdam, sua potência diminuía ou aumentava, até que que os olhos de Markus se abriam em um espanto.

O chamariz de todo aquele poder estava vindo da sua casa.