Cartas de um Passado Futuro

Heckyl seguia praguejando contra o “ex” capanga, nomes que fariam a "mãe" ruborizar, mas naquele momento a dúvida pairou a mente “leguminosa” dele. Assumira inicialmente uma deserção, com Montoya sendo um traidor, mas... e se não fosse tão simples?
- Não sei – respondeu –. Lembro de tê-lo visto deitado, mas quem garante que tenha passado a noite assim?
- Ah, corta essa – interrompeu Rudaho, já impaciente –. Ninguém tem olhos nas costas. Qualquer um pode ter aproveitado um momento de distração mínima e... mas se ele foi pego, a coisa ganha outra dimensão... .

“Olha”, tentou apaziguar a situação, apesar daquele não ser o forte dele. “A zona é um lugar difícil. As pessoas ‘quebram’ . Medo, conflito. De uma hora pra a outra amigos se tornam inimigos, sábios tomam atitudes estúpidas e essas coisas. Além, Ghouls dificilmente teriam entrado no acampamento sem que ninguém percebesse”.
- A não ser que tenham pego ele quando ele foi cagar – complementou.



“Se querem minha opinião, ninguém aqui é babá de ninguém. Cada um cuida de si e se alguém fugir ou morrer... a culpa é só da própria pessoa”. Não que o stalker ignorasse a vantagem numérica que o grupo dava, mas era extremamente individualista e não ficaria chorando se Izu ou qualquer outro virasse paçoca.

Como o resto, ouviu as ponderações de Mutt e... para a surpresa de todos... .
- É... o magricelas tem razão. Em parte. Nunca encontramos um grupo grande de Ghouls, mas nada impede que tenha algum tipo de “sociedade” deles por aí. E não temos ideia de como o livro foi parar na boca daquele cachorro... . Talvez exista até uma versão deles da Arca ou coisa ainda pior... .



"Só tem um detalhe", apontou, cruzando os braços. "Repararam que a mochila sumiu também? Digo, se eu decidisse voltar, também teria a preocupação de levar SUPRIMENTOS? Talvez a arma tenha sido só uma forma de compensação...”. Ele reforçava a teoria da fuga, mas parecia inclinado a achar que Montoya não seria capaz de chegar em casa inteiro sozinho. “A não ser que...”. Ele estava prestes a dizer alguma coisa, mas pareceu mudar de ideia e voltar ao assunto.
- Seja como for, não me preocuparia tanto pela Arca. Eles sabem se defender e provavelmente perceberiam se um exército grande o suficiente se aproximasse pela passagem estreita das montanhas. Além disso... podem sempre dar no pé, né?. Esqueceram que nossa linda casinha agora anda?

Fosse como fosse, aquela notícia era ruim para o grupo como um todo, mas poderia ser importante para Priscila. Heckyl tinha agora menos poder. Além, numa votação, muito provavelmente Izu se colocaria ao lado da garota e se Mutt fizesse o mesmo... .

Mas Mutt era um poço de imprevisibilidade e logo uma nova confusão se instaurava.

Quando ele falou, Rudaho vez um sinal com as mãos como se não pretendesse opinar sobre aquilo, o que já era melhor que ir contra ele, sinal de que a raiva do dia anterior já havia parcialmente se dispersado. O mesmo não podia ser dito de Heckyl.

Sem pensar duas vezes, o “homem-planta” sacou a arma, cano ameaçadoramente apontando para Mutt.
- Na verdade, tenho outra proposta - declarou, taxativo -. Que tal pularmos o blá blá blá e resolvermos na bala, hum? Quem morrer, perde tudo - E um sorriso de estranhos dentes brotou no rosto cascudo dele -. Acontece que isso aí é minha propriedade e se você acha que vai me intimidar fácil assim, tá enganado, irmãozinho. Esqueceu que tá falando com um chefe de gangue? Eu é que faço ameaças pra extorquir as pessoas, sacou? E, ao contrário de você, estou acostumado a usar força física pra isso.

Ele. Cobrira. A aposta. Estava pagando pra ver.

Naquele momento o guia parecera perder a paciência.
- Ai, pelas minhas bolas! Vamos começar com isso de novo?! Quer saber? Que se danem vocês! Que se dane o capanga desaparecido, o cara de urtiga, o velhote doido, a criança mimada... e só pra constar, estava me referindo a esse chiliquento maluco, que é pior que a filhinha da mamãe... . – Rudaho ergueu a própria mochila nas costas e a afivelou, pronto para voltar à trilha – Não ligo pra o que vocês decidirem. Mesmo. Meu plano é seguir evitando qualquer inimigo até onde a comida der, voltar pra Arca com um lindo mapa e deixar que mandem uma equipe pra limpar o caminho depois. Se ninguém vir comigo, ÓTIMO! A glória será toda minha. Imaginem aí, “Rudaho, o primeiro explorador do novo mundo, desbravador da Zona Desconhecida”. E boa sorte pra vocês, voltando sozinhos com grama assassina, pássaros assassinos, cães assassinos, ghouls assassinos e sabe-se-lá-o-que-mais-assassino que encontrem por aí – e sem esperar a resolução do conflito, começou a andar.

Se quisessem continuar tendo um stalker, deveriam se apressar em decidir o que fazer. Izu, Mutt e Priscila poderia juntos subjugar Heckyl, mas ele parecia disposto a tombar levando consigo quem pudesse. Seria um preço que estavam dispostos a pagar pela arma?

A antissociabilidade de Mutt finalmente levara o pequeno time ao caos. Os cães que mataram, no final das contas, eram um dos menores problemas que haviam enfrentado até então, pois durante essa batalha ninguém desaparecera ou ameaçara de morte os próprios companheiros de expedição, como acontecia agora. Nem mesmo Rudaho dera um chilique daqueles quando estava com a vida em jogo nas presas de um cão infernal.

Mas o sucateiro não podia abaixar a cabeça. Se hesitasse, se hesitasse por sequer um segundo, ele estaria abrindo mão do único lucro que conquistara durante toda aquela desventura, se é que podia chamar de lucro uma pequena arma após perder 3 balas para apaziguar Rudaho. Além disso, sabia que o homem-planta estava blefando sobre ser tão mais forte: ninguém ali era realmente muito mais capaz que o outro. A batalha contra os animais o provara. Se realmente entrassem em um duelo até a morte, as chances de sobrevivência de Mutt seriam altas, portanto.

— Chefe de gangue, seu cretino fedorento coração-de-musgo? Qual gangue? Fala do garrinhas, que você está disposto a abandonar, enquanto deixa ao Mutt aqui todo a glória de ser a única voz disposta a ir atrás dele pelo bem de todos?  — Não era pelo bem de todos, mas o bem da Arca era o bem de Mutt.  — Se quer realmente matar Mutt do modo como fala, tão masculino como um cravo, por causa disto aqui — e balançava a arma no ar  —, então pode tentar, mas nem a minha morte nem a morte de ninguém aqui vai mudar o fato de que você não presta nem para cuidar de um bando de capangas. Rudaho aqui, do nosso lado, é capanga de alguém, aliás, e veja como ele é mais capaz que você em todos os aspectos possíveis de se imaginar.

Nisso, Rudaho disse que não estava nem aí para nada, e que seguiria o caminho por conta própria se ninguém mais o seguisse.

— Chefe de gangue, Mutt vai matá-lo agora se isso é o que realmente quer. Esta arma agora é do Mutt, e a morte do homem-planta vai apenas aumentar minhas riquezas. Provavelmente seu sangue é tudo o que de melhor ganharei com essa aventura sem sentido, de qualquer modo. Depois disso, Rudaho, Izu, a menina e Mutt vão seguir em frente, enquanto seu corpo ficará por aqui para o primeiro verme vegetariano que aparecer. Chama-me de ladrão, você se importa mais com a arma que era do garrinhas do que com o próprio garrinhas, e ainda diz que é "sua propriedade"... Vamos brigar, poderoso chefinho. Mas lembre-se da verdade: Mutt é mais rápido, tem mais munição e está melhor armado. Vamos, Izu, vamos, não prevê a morte desse infeliz? Pois Mutt já a enxerga com claridade.