Ato ll: Fora de Hora.

Um verdadeiro pandemônio… o velho templo ardia em chamas crepitantes; havia trevas, névoa e fumaça ao redor; Alice caiu nos braços de uma mulher com toda a pinta de Tecnocrata; meus punhos brilhavam com uma eletricidade além do que eu esperava ser capaz de gerar; e o combate de artes marciais se ampliou com a chegada de King, cujo ataque surpreendente abriu espaço para que eu agisse.

Normalmente, eu precisaria tocar Van Die para descarregar aquela energia, mas as influências malfeas, sob aquela Película enfraquecida, estavam alimentando, potencializando meu efeito. Então, quando o chute acrobático de King atingiu o militar nas costas, jogando-o para longe de Akon, decidi lançar a energia de onde eu estava.

Uma sensação incrível de poder me acometeu quando vi aqueles raios faiscantes saírem de minhas mãos e atingirem os pés de Van Die, uma sensação que, no meu estado alterado, me fez gritar de raiva e entusiasmo.

Mas minha reação mudou quando vi que a rajada havia libertado os espíritos dos implantes cibernéticos nos pés do militar. Aquelas coisas surgiram como que eletrificadas, como se eu tivesse fornecido a energia da qual elas eram feitas, e sorriam de forma sarcástica e malévola. Me assustei ao pensar "o que foi que eu fiz?", e não só por haver liberado aquelas criaturas fascinantes e terríveis, mas também por constatar que era eu quem estava mantendo a Película minimamente ativa naquele espaço e que meu ataque podia ter dado início a um efeito em cadeia de destruição da Película em espaços mais amplos.

Eu precisava me isolar emocionalmente daquelas influências malfeas e também reverter o esgarçamento da Película. Decidi usar uma rotina de minha própria criação, uma que me conectava à Nathicana e sua morada. Não teria o efeito de restaurar a Película, mas poderia reequilibrar meu espírito e facilitar o trabalho de restauração que eu faria a seguir. Até concluir a rotina, eu só podia esperar que King e Akon mantivessem Van Die e as criaturas na defensiva.

Permanecendo atrás da barreira que eu havia criado, enxuguei a testa encharcada de suor, cobri meus olhos com as palmas das mãos e tentei visualizar os maravilhosos jardins que eu tinha visto ou visitado em sonhos, enquanto murmurava alguns versos de um poema:

It was in the pale garden of Zaïs;
The mist-shrouded gardens of Zaïs,
Where blossoms the white nephalotë,
The redolent herald of midnight.
There slumber the still lakes of Crystal,
And streamlets that flow without murm’ring;
Smooth streamlets from caverns of Kathos
Where brood the calm spirits of twilight.
And over the lakes and the streamlets
Are bridges of pure alabaster,
White bridges all cunningly carven
With figures of fairies and daemons.

Eu já tinha participado de alguns combates e escaramuças com magia antes, mas aquilo superava tudo! Explosões de luz amarela, golpes de artes marciais potencializados por chi, a imagem de um tigre espiritual gigante, concreto saltando do chão para proteger King do ataque de relâmpagos vivos, bolas de fogo rodopiando e se espatifando na eletricidade…

E, mesmo com toda aquela loucura, eu já estava me sentindo um tanto melhor e mais calmo quando comecei meu esforço para restaurar a Película. Em parte, porque tinha conseguido sentir os doces espíritos do crepúsculo e visualizei os campos de nephalotës brancos, mas em parte também porque os malfeas estavam agora concentrados no King.

Masquei o tabaco com mais força e rapidez para focalizar a magia, concentrei-me em seu gosto terroso e tirei a camisa, sentindo-me mais próximo das tradições algonquinas. Minha essência Primordial, ligada à ascendência faerie em meu sangue, associava-se ao reino de Nathicana, mas aprendi a enxergar e sentir a Película por meio das tradições e cânticos dos Oradores dos Sonhos nativos.

Mentalizei a Película enfraquecida como um tecido necrosado que se regenerasse, ganhando novamente a cor vermelha do sangue quente, vivo e pulsante. Fiz isso enquanto me abaixei para sujar os dedos com lama e, já em pé, pintei meu rosto e torço como se fosse um antigo pajé.

O mundo ganhou ares de sonho, pois os gritos de Kiai, as explosões, o surto do militar, os raios, tudo foi acontecendo como que em câmera lenta, e as vozes dos agentes atrás de mim soavam abafadas como se estivessem vindo de dentro da terra. Por isso mesmo, senti os espíritos ancestrais do vento e da chuva agirem para restabelecer o equilíbrio.

A magia surtiria algum efeito, embora eu não pudesse avaliar em que grau. Mas quase botei tudo a perder quando, no desvanecer da luz amarela gerada por Van Die, escutei a palavra "Hastur" vindo de alguma estranha dimensão…

Na primeira vez em que contei a Paul sobre o meu sonho com um Emblema sinistro, ele logo me perguntou se o tal Emblema era Amarelo. Só mais tarde, com meus estudos de ocultismo, pude entender melhor o porquê daquela pergunta. "Hastur" podia ser o nome de uma entidade ou de um lugar, mas certamente não era um bom augúrio…

Eu só soube que a magia surtiu um bom efeito no momento em que vi as criaturas relâmpago explodirem, separadas que foram da dimensão na qual existiam. Mas a magia é tal como os sonhos - ou, creio eu, é um tipo de sonho: mutável e imprevisível!

Isso porque a barreira que nos isolou dos malfeas teve também o efeito de nos transportar para outro "lugar", ou melhor, para um Plano ou Semi-Plano incrustado, talvez, entre o Sonhar e a Umbra Rasa. Provavelmente, era um efeito colateral inesperado da Rotina que eu havia lançado antes de fechar a barreira, a Saudade dos Jardins de Zaïs, pois era em Zaïs, a dimensão da Divina Nathicana, que meu espírito sentia estar adentrando naquele momento.

E, se esse efeito de transporte já não fosse inesperado e estranho o suficiente, veio depois aquele touro gigante saindo de névoas prateadas e que se comunicou com mugidos que eu compreendia como se fosse a voz de um venerável shaman falando em algonquino. E tudo isso seria catártico e belo e perfeito se não fosse o desejo súbito que eu tive de eletrocutar aquela criatura que agradecia minha piedade até que as vísceras dela explodissem queimadas para fora do corpo!

Aquilo me deixou tenso, confuso e com o estômago revirado ao ponto de eu me vergar para a frente, mas não cheguei a vomitar. Eram efeitos inesperados como esses que davam à minha magia um estilo "excêntrico", como dizia Paul (com visível desagrado), e que me faziam sentir meio sem controle, como alguém perdido em sonhos e cuja consciência pula de uma imagem para outra e para outra de forma semi-aleatória.

Para me recompor, decidi tirar a atenção de mim mesmo e olhar meus companheiros de cabala. King parecia estar só um pouco ferido e com efeitos de paradoxo. Já Ashe estava caído, visivelmente ferido, mas já se levantava. À nossa volta, o ambiente era uma versão levemente modificada do Plano de onde viemos, mas que rapidamente se transformava nas imagens que eu já tinha visto de Zaïs em sonhos e meditações.

Eu já havia comentado sobre minha ascendência faerie com meus companheiros, então eles sabiam do meu desejo de encontrar Nathicana. Agora, era o momento de contar que meu coração começava a se alegrar, pois, de alguma maneira que eu mesmo não conseguia explicar, a mesma barreira que isolou os Malfeas nos transportou para aquele reino maravilhoso. Eu podia sentir que uma trilha se abria para nós, uma trilha até ela.

- Nada poderá nos ameaçar se seguirmos por ali!

Foi o que eu disse quando terminei de contar a eles onde estávamos.

Apesar de Akon ter se ferido por ter ficado na linha de frente contra o adversário, a gratidão não era algo que King costumava demonstrar, mesmo que a sentisse... além disso as diversas barreiras ideológicas entre ambos reforçava a postura de indiferença que ele sente que precisa demonstrar mais do que realmente acredita que seja necessário.

Quando o hermético questiona para Ronald o que ele fez, nada que o Orador pense pode ser dito... Afinal o que ele queria era justamente fechar a fenda da Umbra...mas era difícil dizer se aquele lugar era puramente o reino espiritual. Mas pelo que conheciam, a verdade é que tudo se mesclava com algum canto de um plano astral... Algo escondido entre a Umbra Rasa e o Sonhar... Akon, ainda ferido via tanto a energia mística da psique do Tigre quanto algo estranho, sombrio e sinistro emanar do objeto com o desenho do Pássaro-Trovão que o estudante de letras levava consigo.

Tudo que conseguia pensar que é talvez tenha sido um desejo particular que mudou...E de fato, ao consultar seu próprio pensamento e lembrança ele entende que realmente na última hora mudou de ideia... Mas por quê? Alguma coisa fora dele o fez mudar de ideia enquanto conjurava a rotina.

Ronald realmente não se importava com os detalhes, sentia plenamente que estava sendo conduzido para uma trilha de felicidade e alegria de ascensão de sua origem feérica pediu que seus amigos o seguissem. Comentou que era um caminho de proteção...

Mas King não estava convencido disso, Akon apenas acompanhava meio ferido, o Akasha mancava de leve enquanto ia lembrando que ao contrário do que o hermético lhe disse ele realmente tem sim não só um mestre, mas como alguém que ele considerava "O Mestre" e talvez ele pudesse ajudar naquela circunstância.

Van Die parava de se "deteriorar" mantendo-se em um estado etéreo... o que os três sabiam é que uma morte dentro da Umbra poderia gerar um efeito similar a aquilo... O que leva-los a crer que provavelmente o momento do golpe final já foi dentro da Umbra... Apesar de conhecer um pouco sobre cosmologia, King se perguntava se eles estavam dentro do Sonhar.

Pouco além de sua própria busca levou Ronald tão profundamente próximo de Zais, mas quase nada sabia sobre os jardins além daquele poema e de impressões distantes.

Conforme caminham por um tempo, em uma superfície que parece uma estranha feita sobre a ponte de alabastro é lisa e a névoa que saí dos rios e lagos parecia afetar a visão. Era difícil ver se havia de fato um céu, era tão cinza que pareciam estarem em uma caverna.

A precisão do tempo que andaram se perdia...

...mas pouco à frente, Akon viu uma figura que apenas ele reconhecia, ela saia se esgueirando pelo beiral da ponte, como se tivesse os seguido há algum tempo, especialmente pelo que essa figura disse depois.


—Tem razão em dizer que ele não tem um mestre, sim, Chen Qing He. A verdade é ele tem "O" Mestre.

O homem não tinha claramente sua etnia definida, era como se fosse algum descendente de vários povos do oriente, do continente africano e americano e europeu... Ele guardava uma ninja-to na bainha da cintura, pouco depois de saltar para o meio do caminho dos três jovens magos.

Como quem queria impedir que esses continuassem.
—Certamente vocês cometeram vários enganos até aqui...
Mas não é culpa de vocês, estão sendo manipulados pelo jovem que convocou todos...
Ele esta os seguindo. O tal do "escorpião..."

O Mestre olha para Akon, como se o próprio Akon soubesse o que ele vai dizer.
—Ele planejou isso desde o começo, se aproximou de vocês pouco depois de se unir ao "Movimento Branco" para queimar essa sinagoga...Tudo que ele esta fazendo é abrir o caminho de vocês por esse jardim... Mas a despeito das ambições de Ronald, vocês não devem prosseguir para não deixarem uma trilha de migalhas para ele e o lugar que Ronald quer chegar não é bom.

Falava enquanto se aproximava de Akon para ampara-lo e ajuda-lo a andar, já que os dois outros magos estavam um voltado para sua postura sempre ranzinza e diretora e o outro seduzido pelo caminho que se abria como se todos os mistérios do mundo pudessem finalmente ser revelados e nenhum deles reparou que poderia auxiliar o colega de Cabala..

—Eu sugiro que voltem imediatamente e deixem esse lugar, pois o caminho adiante passa por uma grande Tempestade que vocês deixaram para atrás por um instante, para depois cair em um caminho que passa pela morada de seres sombrios em terra das mais profundas formas de existência decaídas das trevas corruptoras... Pelo que notei, tudo que foi armado o foi pelo desejo do manipulador mago desaurido chamado Escorpião caminhar por elas justamente com ajuda de vocês...Eu mesmo não sei se posso sair daqui sem Ronald.

Dizia o mestre agora já com o braço direito de seu discípulo sobre seus ombros.

Ronald sorri, diante das palavras dos três ele parece ignorar completamente as palavras dos três e nisso a sensação de frio e o aumento de sombras ao redor da direção de onde ela esta caminhando feliz com olhos esbugalhados na direção mais profunda da região entre a Umbra e o Sonhar...

Ele desaparece em meio a sombras, adentrando na caverna acreditando estar em direção da bela Nathicana... O Orador apenas ele vê em uma trilha seus detalhes reais como são...

Akon sente como se sua própria lógica tivesse compreendido o escorpião enquanto seu Mestre Avatar o carrega. Ele aos poucos vai se recordando como se tivesse chegado a essas conclusões sozinho e que assustadoramente as pessoas racistas que ele enfrentou há algum tempo, assim como exército e até a Tecnocracia tenham sido todas trazidas pelo mesmo Escorpião.

O Mestre começa a levar o seu discípulo, tentando afasta-lo de Ronald, que parece hipnotizado em seguir em frente.

—Vamos, Akon! Não podemos segui-lo, a tempestade iria nos despedaçar...

King sabia que o ancião falava da Tempestade de Avatares, mas era algo que o Tigre não temia...

...Ronald começava a se distanciar em meio à sussurros de espíritos místicos perdidos.

Forçando seus instintos de sobrevivência contra a sedução que recebia, Ronald recobra a consciência por um instante e rejeita a atração forte que sentia em manter-se na trilha...

Ele retorna envolto em uma névoa ofuscante aos olhos de King, que se assusta e o vê seguindo em direção da beirada da ponte e a escalando para se jogar de costas sem pensar em um rio que se torna uma trilha indo do mundo espiritual em um amplo reflexo até a direção do leito do Myskatonic... Onde Ronald sentia seu corpo físico agora se molhar...

Ele não duvidava que a água é do rio do mundo material.

Ele sugeria aos dois colega de Cabala para fazerem o mesmo, mas era com eles a decisão.
No fundo, Akon sentia que foi a mente dele que influenciou a mente dos espíritos ao redor dali...
Enquanto King pensava que foi o Tigre quem puxou de volta o Ronald.

Mas é fato que eles deveriam agora decidir se pulariam no rio em um salto de fé.