Capítulo 1: O Toque da Praga

Com dificuldades, Barbarossa consegue sacar sua falcione e aguarda o momento em que a ave partiria para o ataque. E não demorou a acontecer: traçando uma linha perfeita em seu voo, a criatura foi de encontro ao capitão, que tentou acertá-la com a sua larga espada, mas fracassou. A ave, por outro lado, acertou uma mordida no ombro do pirata, perfurando-o com o seu bico serrilhado. Em seguida, a ave voltou a tomar distância e a se preparar para uma nova investida, enquanto o capitão tentava se manter pendurado de cabeça pra baixo.

O pássaro que parecia ter saído dos pesadelos de Barbarossa avançou novamente contra ele, de bico aberto, mostrando suas armas. Desta vez o capitão se preparou bem para a investida, esperando o momento certo para atacar, e quando ele veio, Barbarossa deu uma espadada no corpo da criatura, arrancando penas e sangue. A ave soltou um som lamuriento, mas mesmo assim teve forças para seguir seu ataque e enterrar uma vez mais seu bico serrilhado na carne do pirata. Com a mordida da besta, Barbarossa quase foi levado para fora da ponte, mas novamente forçou sua perna direita para continuar a sustentá-lo de cabeça para baixo.

O capitão desta vez erra seu ataque, e a criatura dá mais um rasante contra ele, novamente rasgando a pele de Barbarossa com seu bico pontiagudo. O pirata estava completamente vulnerável sem a sua armadura; pelo menos o reconfortava saber que se ele não tivesse a tirado previamente, o peso da armadura já o teria jogado para as profundezas do precipício.

A criatura soltou um piado estridente quando preparava-se para um novo bote. O som ecoou pelos paredões rochosos, atingindo o vale abaixo e enfraquecendo a coragem do capitão, que além de lutar contra a besta, tinha que lutar consigo próprio a cada segundo para se manter na ponte. No calor da batalha, ele não estava sentindo dor na perna que o mantinha suspenso, mas àquela altura ela certamente já estava bastante dolorida. O som que a harpa do fantasma fazia continuava a ser uma canção triste e melancólica, como um pano de fundo que retratava a real situação desesperadora de Barbarossa.

O ataque veio de cima.

Antes que a ave de corpo esguio aproximasse, o capitão endireitou seu corpo e balançou seus braços, na esperança de atingi-la com a espada. A falcione passou perto, arrancando penas de uma das quatro asas da criatura, que então por sua vez abaixou o longo e sinuoso pescoço e uma vez mais acertou a mordida no ombro desprotegido de sua presa, deixando-o em carne viva. A ave passou reto, seguindo o seu curso e preparando-se para dar uma volta aérea e realizar um último ataque.  

A ave batia seus dois pares de asas e avançava sempre com o bico aberto, mostrando suas presas para o novo ataque. Havia um quê de perverso nos olhos miúdos da criatura, um olhar assassino. A distância entre ela e sua presa encurtava a cada segundo; o pirata mantinha-se firme em sua posição desavantajada. A ave agora estava ao alcance da lâmina de Barbarossa, mas o pirata desta vez esperou que ela desse o bote primeiro; a criatura tentou morder novamente o ombro de sua presa, mas Barbarossa já estava esperando o ataque e conseguiu jogar o seu corpo para trás, ao mesmo tempo em que descia sua lâmina nas costas da criatura, acertando-a em cheio. A ave continuou voando alguns metros, até ir de encontro ao paredão rochoso e então desabar, morta, pelo precipício.

Esgotado, mas a salvo, o capitão guardou sua lâmina na bainha e fez um último esforço para se dobrar e se segurar sobre a ponte com as mãos, para então se erguer sobre ela. O seu corpo estava ferido e ele não tinha mais forças em sua perna direita. Ao olhar para a frente, Barbarossa viu que o fantasma não estava mais lá, e a música que ele estivera tocando havia se encerrado.

A duras penas, o pirata alcança novamente terra firme do outro da ponte, e se estira sobre o chão rochoso. A lua já se fazia presente no céu limpo da noite. Ele descansou por longos minutos, que poderiam ter sido horas. Era necessário o descanso após os exaustivos acontecimentos que se acometerem sobre ele, a começar pela primeira aparição do fantasma e o seu toque da praga. Às vezes Barbarossa sentia uma dor penetrar sua pele como uma agulha no ponto em que fora tocado.

O velho lobo, enfim, ergueu-se para prosseguir com a sua jornada. Havia uma parca trilha que seguia por montanha abaixo. Era um caminho sinuoso e perigoso, mas tomando os devidos cuidados, Barbarossa conseguia avançar lentamente pelas pedras. Em meia-hora, ele atingiu um vale encobertado por uma mata fechada com árvores grandes e cheias de vida. Seguindo reto pela trilha, não demorou para que o experiente pirata alcançasse uma clareira. Ao centro havia um poço profundo, cujo o fundo não era possível enxergar já que a luz do luar não chegava até lá.

O velho lobo aproximou-se do poço tomado de escuridão. Mexendo em suas coisas, ele pegou uma tocha e a acendeu com suas pederneiras, mas a iluminação do fogo não era o bastante para clarear as profundezas daquele buraco subterrâneo. Pensando que a única alternativa seria descer pelas paredes do poço, Barbarossa pegou a corda de cânhamo atada ao seu cinto no exato momento em que uma voz se fez ser ouvida de dentro do poço.

"Um sacrifício deve fazer
Quanto maior o valor,
Melhor resposta há de obter."

Com essas simples frases, a voz calou-se.

Barbarrosa amarra a ponta da corda numa árvore e inicia a descida pelo poço. Ele desce metro a metro, tomando os devidos cuidados, mas a corda de 15 metros não é o bastante para alcançar o fundo do buraco. O capitão tinha a opção de seguir escalando pelas paredes com o apoio de suas mãos nuas, ou de subir novamente e tentar decifrar o que lhe fora dito.

Sem que tivesse a consciência disso, o capitão Barbarossa acidentalmente havia feito o tal sacrifício ao arremessar um objeto sem valor algum para dentro do poço. A escuridão engolfou completamente o objeto e o pirata não ouviu em momento algum o som dele batendo no chão. A mesma voz que soara instantes atrás voltou a se comunicar. Ouvindo atentamente, dava para perceber que a voz saia das profundezas do buraco, embora ela não fizesse eco e nem parecesse tão distante quanto o fundo do poço sugeria.

"Você tem direito a uma única pergunta, forasteiro", dissera a voz.

A resposta não vem de imediato. Passam-se longos segundos, como se o dono da voz etérea estivesse avaliando a pergunta do pirata. E então as palavras vem em duas únicas frases e num tom enigmático:

"Ao nascer da quarta lua do próximo mês,
No seu porto seguro você deve estar."

Barbarossa lamentou-se por não ter feito um sacrifício de verdade, pois estas palavras pouco diziam. Mas talvez, com tempo para refletir, ele chegasse a alguma conclusão.