#Capítulo 02 - Pesadelo

Ao passar a descer pelos degraus, Lanthys nota que o ambiente vai se alterando enquanto o jovem vai descendo, todo o cenário ao redor vai sendo engolido pela escuridão e, por algum tempo, o cavaleiro só pode ver os degraus diante dele, não discernindo nenhum dos adornos presentes na escada. Após vários passos, Lanthys começa a observar uma luminosidade ao fim da escadaria, onde havia uma abertura que dava para outro ambiente...

Apesar de Lanthys e Selene estarem vivenciando toda a experiência onírica individualmente até aqui, assim que estes concluem a descida pelos setenta degraus, os investigadores encontram-se lado a lado no interior de uma grande caverna. Do lado oposto ao da abertura a qual acabaram de adentrar no ambiente, havia uma nova passagem, porém, a mesma se encontrava bloqueada. No entanto, o que mais chama a atenção dos jovens são as chamas ao centro do ambiente, formando um imenso pilar de fogo que vai do solo até desaparecer em meio à escuridão, centenas de metros acima de onde se encontravam.

Parcialmente encobertos pelo pilar flamejante, do outro lado do ambiente, os jovens investigadores avistam duas silhuetas masculinas de estatura elevada, encobertos em túnicas avermelhadas e adornadas com diversos detalhes e joias. Além de estarem vestidos de forma similar, as duas figuras masculinas tinham pele morena e barba, todavia, apesar de possuírem feições semelhantes, claramente tratavam-se de entidades diferentes que aparentavam aguardar a aproximação dos recém-chegados.

Os dois guardiões de rubro observam a movimentação do jovem cavaleiro que se aproxima, sendo acompanhado logo em seguida por Selene, se apresentando e adiantando o motivo pelo qual ali se encontram. Os dois grandes homens, que deviam medir um pouco mais de dois metros cada um, entreolham-se por um instante, em seguida voltando sua atenção aos recém-chegados, visivelmente observando as vestimentas do rapaz e da jovem que o acompanhava por alguns segundos. O mais esguio entre os dois que se encontrava à esquerda então se pronuncia, com um timbre de voz rouco, porém claro o suficiente para ser bem compreendido, apesar do estranho sotaque que certamente não fazia parte de nenhum dialeto conhecido de Solas, fazendo a consoante 'p' soar como 'b', acentuando tonicamente as penúltimas sílabas das palavras, além de pronunciar as letras 'r' e 's' de forma bem destacada.

- O que temos aqui Kaman-Thah? Visitantes do mundo desperto em vestimentas adornadas, trazendo consigo armamentos, em busca de um espírito perdido na Terra dos Sonhos... este não é o tipo de viajante que costumamos receber... e aparentam ser perigosos, pois apenas um feitiço poderoso poderia lhes permitir trazer itens do mundo desperto até aqui...

O segundo homem, à direita, de físico mais robusto, se encontrava de braços cruzados até então e, após olhar rapidamente em direção ao primeiro, dá um passo à frente descruzando os braços, abrindo-os num sinal de boas vindas, pondo-se a falar logo em seguida num forte tom de voz que rapidamente preenche o ambiente, com o mesmo estranho sotaque do primeiro.

- Sejam vós bem vindos à Caverna da Chama, viajantes do mundo desperto! Sou Kaman-Thah e este é o sacerdote Nasht, juntos somos os guardiões desta que é a mais segura dentre as passagens à onírica Terra dos Sonhos!

O guardião mantém a pose por alguns instantes, em seguida baixando os braços, cruzando-os novamente enquanto observa os visitantes. O grande homem se põe a falar novamente, dessa vez num tom de voz um pouco mais brando, agora questionando as motivações dos investigadores.

- Me digam, cultistas do mundo desperto, o que procuram exatamente além desta caverna, como pensam em encontrá-lo e por que julgam este ser tão importante? Além disso, quais motivos os levam a crer estarem preparados para sobreviver na Terra dos Sonhos? Esta realidade não segue as mesmas regras da qual conhecem e ações que imaginem ser inofensivas podem desencadear mudanças profundas e irreversíveis! É, portanto, de nossa responsabilidade, garantir que não adentrem nesta realidade se vossas ações forem, em nosso entendimento, prejudiciais a si mesmos ou à própria Terra dos Sonhos!

Ambos guardiões da Caverna da Chama escutam atentamente as palavras do jovem cavaleiro mantendo-se em silêncio até que este conclua o que tinha a dizer. Após as explicações, Kaman-Thah imediatamente leva sua mão direita ao queixo transparecendo certa apreensão, já Nasht dá alguns passos lateralmente até se virar novamente para Lanthys, logo se pronunciando.

- Não imagines estar preparado para tudo que pode encontrar nesta realidade meu jovem. Outros como vocês já visitaram o Mundo dos Sonhos e muitos perderam suas vidas por acreditarem demais em suas habilidades, exatamente como está demonstrando... se deseja realizar o que diz, a primeira coisa que tem de ter em mente é que seus conhecimentos e habilidades podem não lhe servirem de nada!

O sacerdote de rubro mantém seu olhar direcionado ao cavaleiro, no entanto, não havia hostilidade em seu olhar ou em suas palavras. Já Kaman-Thah ainda pensativo dá um passo à frente, também se pondo a falar diante do que havia sido exposto.

- Tu afirma ter de libertar um espírito aprisionado no interior da Torre de Koth e ter sido instruído a não deixar a mesma... mas em primeiro lugar, não devias sequer cogitar adentrar nesta que serve de ligação entre a superfície e o submundo... a placa de pedra encantada que bloqueia a passagem para o interior da torre ali se encontra, pois as criaturas aprisionadas em tempos ancestrais não devem alcançar a superfície em hipótese alguma e, adentrar na torre, é o mesmo que criar a possibilidade destas deixarem o submundo. Dessa maneira, não podemos concordar que deixem a passagem aberta nem mesmo por alguns minutos...

O sacerdote olha de lado em direção ao seu companheiro Nasht por um instante, em seguida voltando seu olhar para o jovem cavaleiro diante dele, complementando o que estava a dizer.

- Se pretendem adentrar na Torre de Koth, deverão fechar a passagem assim que atravessarem-na, apenas reabrindo-a se conseguirem retornarem à superfície. Mas entendam que, a possibilidade de se tornarem presas dos seres que habitam o submundo será grande. Os gigantes que perambulam o labirinto de Zin poderão notar vossa presença, os caçando no interior da torre negra!

Nasht então se aproxima de Kaman-Thah, cruzando os braços e, após observar os dois investigadores por alguns instantes, torna a se pronunciar, agora olhando o companheiro.

- Não deveríamos deixá-los passar Kaman-Thah. É um risco muito grande confiarmos nestes. Suas intenções podem ser boas, mas podem colocar toda a Terra dos Sonhos em risco se incidentalmente libertarem os Gugs de volta à superfície...

Nasht arqueia a sobrancelha direita enquanto ouve a retificação do jovem cavaleiro, que conclui com um questionamento. Porém antes que o guardião pudesse respondê-lo, Selene complementa demonstrando o feitiço inscrito na tira de papel o qual seria usado para abrir e fechar a passagem para a Torre de Koth, também sugerindo que os sacerdotes os acompanhassem. Prontamente Nasht move a cabeça em sentido negativo, logo após pronunciando-se a respeito.

- Não podemos deixar esta caverna, logo, não podemos acompanhá-los para assegurar que façam o que é necessário. Apenas podemos escolher acreditar ou não nas suas palavras e na eficiência de seus métodos... e se existem outras maneiras de se resolver o que buscam, seria algo que vocês deveriam saber ou descobrir, nossa função aqui é outra e não possui relação alguma com sua busca.

Kaman-Thah, por sua vez, leva as duas mãos às laterais de seu tronco, por alguns instantes olhando em direção ao companheiro, enquanto inicia a expor sua opinião, sem alterar seu tom de voz ou a expressão em seu rosto.

- De fato não podemos fazer muito mais do que acreditar nas palavras destes viajantes Nasht, mas é certo que já recebemos em algumas ocasiões, outros viajantes do mundo desperto como estes dois e que possuíam habilidades especiais que lhes permitiam uma chance de sucesso maior no que buscavam realizar, mesmo que possam ter falhado em suas jornadas na Terra dos Sonhos por algum fator isolado.

Nasht observa o colega enquanto este fazia sua colocação, demonstrando já compreender onde este queria chegar com sua linha de pensamento, porém permite que Kaman-Thah prossiga sem interrupções.

- Sendo assim, acredito que devemos dar-lhes um voto de confiança permitindo sua passagem. Mesmo que esta seja uma situação extremamente arriscada, sinto que estes jovens estão comprometidos a fazer todo o possível para que suas ações não terminem gerando consequências desastrosas...

Kaman-Thah mantém seu olhar em direção à Nasht que, por sua vez, torna a observar os investigadores, mantendo-se em silêncio por alguns instantes. O grande homem de robe vermelho dá alguns passos lateralmente no ambiente, interrompendo o silêncio em seguida.

- Não imaginem que morrer é o pior que pode acontecer com vocês na Terra dos Sonhos... se isto acontecer suas mentes perderão a capacidade de sonhar e jamais poderão adentrar nesta realidade novamente, visto que não estão o fazendo fisicamente, todavia, há castigos piores aguardando aqueles que se aventuram nas terras oníricas... principalmente os tolos o bastante para desejarem adentrar no submundo... mesmo que tudo que planejam funcione, vocês podem acabar aprisionados para sempre no submundo da Terra dos Sonhos, podem ter suas mentes destruídas e nunca mais despertarem em parte alguma ou até mesmo fazer com que criaturas atravessem a barreira que separa as duas realidades usando-os como pontes para seu próprio mundo...

O sacerdote então interrompe sua caminhada, fitando os dois jovens investigadores e, após um breve momento de silêncio, complementa o que dizia, mantendo o tom de seriedade.

- Mesmo sabendo de tudo isto, ainda desejam prosseguir?... Caso a resposta seja afirmativa, não irei me opor à sua passagem, mas também não terei responsabilidade alguma por qualquer coisa que desencadeiem em sua jornada... e se por ventura venham a causar alguma catástrofe na Terra dos Sonhos, tenham certeza de que serão amaldiçoados pelas forças superiores que regem esta realidade, pagando por suas ações!

Nasht e Kaman-Thah observam a resolução dos investigadores  permanecendo em silêncio enquanto estes se manifestam. Assim que concluem, os dois guardiões  se entreolham e Nasht acena rapidamente movimentando a cabeça em sentido afirmativo. Ambos então caminham em direção à abertura do lado oposto ao qual Lanthys e Selene adentraram, posicionando-se cada um de um lado da passagem. As portas que impediam a passagem se abrem mesmo sem serem tocadas, revelando uma nova escadaria que desce em espiral junto às paredes do ambiente profundo e circular de mais de 20 metros de diâmetro. Ao contrário da qual adentraram na caverna da chama, a nova escadaria era bem mais simples e sem nenhum ornamento chamativo, dando a impressão de ser entalhada em madeira, esta, entretanto, parecia ser bem mais extensa, não permitindo se ver onde a mesma terminava em meio à iluminação que diminuía conforme se afastava da entrada.

Após revelar os novos degraus, Nasht se põe a falar novamente com sua voz rouca e o mesmo sotaque característico.

- Vocês podem seguir, mas não se esqueçam do que acabaram de dizer aqui, caso venham a contrariar suas próprias palavras, certamente terão de lidar com a ira das entidades que regem a Terra dos Sonhos!

Kaman-Thah também pronuncia-se novamente, complementando o que seu companheiro dizia, aproveitando também para responder a um dos questionamentos feitos pelo jovem cavaleiro.

- Sejam cautelosos e tenham boa sorte em sua jornada, viajantes do mundo desperto! Vós, assim como aquele que se encontra aprisionado, terão de refazer o mesmo caminho de entrada para retornar à vossa realidade, sendo assim, é possível que nos encontremos novamente!

Kaman-Thah então estende sua mão direita em direção à abertura que dava acesso à escadaria que acabara de ser revelada, Nasht também fazia o mesmo movimento com sua mão esquerda, demonstrando que os investigadores podiam prosseguir.

- Sigam através dos setecentos degraus do sono mais profundo, ao fim da escadaria, emergirão no Bosque Encantado da Terra dos Sonhos, onde poderão iniciar vossa busca!

Os jovens investigadores iniciam a descida através da nova escadaria diante deles, enquanto o fazia, Lanthys ainda faz um último questionamento direcionado aos guardiões, entretanto, a porta que dava acesso à Caverna da Chama se fecha antes que o cavaleiro receba qualquer resposta. Prosseguindo pela escadaria, os jovens seguem em espiral até alcançar uma porta de madeira que encontrava-se destrancada, ao abrirem-na, são inicialmente ofuscados pela luminosidade exterior que contrastava com a escuridão parcial no interior.

Ao observarem a área externa, ambos notam que estavam em meio a diversas árvores, a maioria destas, grandes carvalhos encobertos de musgo cujos arbustos se entrelaçavam impedindo que a luminosidade penetrasse completamente, deixando o ambiente iluminado como no crepúsculo onde o sol não se encontra completamente visível. Apesar da baixa luminosidade característica deste fenômeno, ambos podem também notar diversos estranhos pontos luminosos fosforescentes que complementavam a iluminação da região, espalhados pelo solo e até mesmo junto aos troncos das árvores.

Observando mais especificamente o local por onde adentravam no bosque, os investigadores notam que deixavam o interior de um grande carvalho, porém, este era bem menor do que o necessário para comportar a escadaria que acabaram de cruzar...

Além da porta decorada, apenas três degraus os separavam de iniciar sua jornada e, logo que dá o seu primeiro passo, Lanthys nota que a gema-guia que lhe fora entregue por Nybbas se iluminava, apontando para que seguissem adiante com um tênue brilho esverdeado. Entretanto, de imediato nenhum dos investigadores poderia definir se deveriam seguir para o norte, sul, leste ou oeste, restando apenas que rumassem na direção apontada pelo amuleto.

Observando a região em que se encontravam, além da estranha luminosidade, os jovens investigadores não conseguem distinguir grandes diferenças entre o local e um bosque comum de sua realidade. A vegetação era muito semelhante, apesar de não conseguirem nomear a maioria das pequenas plantas que avistavam em meio aos grandes carvalhos de arbustos entrelaçados no alto da copa das árvores, bloqueando parcialmente a entrada da luminosidade.

Observando mais de perto o tronco das árvores e o estranho brilho que se manifestava, os jovens podem notar que estes são causados por pequenos fungos disformes que encontram-se espalhados tanto nos troncos quanto no solo. Além da emanação luminosa, não era possível se afirmar apenas os observando se havia algo de diferente nos mesmos.

Enquanto permaneciam próximos à abertura a qual adentraram no bosque, os dois jovens podem também ouvir ruídos distantes que se assemelham ao cantar de diferentes pássaros, assim como sons que lembram o bater de asas de aves de porte médio e o balançar de algumas folhas e arbustos, no entanto, apesar dos ruídos, ambos não avistam nenhum animal ou criatura nas proximidades.