Havia cheiro de sangue, fezes e éter, misturado a uma textura de limo, de raízes subaquáticas que se rompiam de uma maneira antinatural. Havia frio, a percepção de um vento cortante que não estava realmente ali, mas gelava a alma. E no meio daquele pântano de sinestesia, dor. Não a dor que se sente com carne e nervos, mas a dor da alma: a vida vista de fora do corpo vinha com a lembrança de um pai encarcerado, uma mãe morte, um amor abandonado e um filho que eu não conheci. Vinha temperada por todo o sangue que escorria das minhas mãos mortas, por cada grito que escutei sem me mover. Também havia cheiro de terra de túmulo, de húmus. Cheiro de carne e ossos queimados.
Em meio àquele turbilhão, ódio. Ódio por ter deixado a vida e por ter sido tão tolo a ponto de colocar tudo a perder.
Ódio por tudo o que perdi realizando um sacrifício nobre.
Quando, finalmente, o casulo se abre para o nada, um não-ar enche um par de não-pulmões, e por puro instinto levo não-mãos ao abdômen, procurando por intestinos fora do lugar.
Abro os olhos, e os rostos dos meus algozes se dissolvem como névoa na sua mente. Mas o turbilhão ainda estava lá, e antes que eu pudesse perceber o que, de fato, estava fazendo, liberto um urro, um grito visceral de dor, frustação, medo e fúria. Um grito de morte.
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHH!
A sensação era de que eu fosse explodir como uma granada, mas se dissolve lentamente quando, de joelhos e curvado sobre o meu próprio tronco, sinto um toque em meu ombro.
Havia um homem ali, ou algo que parecia ser um homem, que tentava me ajudar a sair do que quer que fosse aquilo que me prendia. Ele me ajudou a tirar o sangue e o icor dos olhos, a afastar todo o limo da face, e ver que eu estava no saguão do que parecia ser uma grande estação de metrô.
Encaro meu tronco, incrédulo, quando noto que meus intestinos parecem estar no lugar, apenas para notar minhas mãos, translúcidas, abaixo de meus olhos.
Na minha vida valorizei a todo tempo a minha capacidade de ser racional, de manter as coisas em perspectiva, mas não havia qualquer tipo de ciência ou verdade religiosa que me preparasse para aquilo que acontecia comigo.
Voltando a face, ainda parcialmente enlameada, ao homem que me ajudava, pergunto, sem rodeios:
Onde estou? Que lugar é esse?
E, então, olhando para minhas mãos sujas:
O que aconteceu comigo? Estou morto? Isso é o inferno?