As águas do lago refulgiam, emanando uma luminescência azul-esverdeada. Podíeis ver vosso rosto refletido na superfície cintilante, bem como contemplar as ondas e marolas que se elevavam e se quebravam nas margens do lago. Ao submergir, pudestes observar o barqueiro, qual estátua de mármore, e as ondas do lago, que agora assemelhavam-se mais a um oceano, fechando-se sobre vossa cabeça.
Foi uma sensação de perplexidade e surpresa, como se tivésseis caminhado para trás, sem olhar, e caído em uma piscina oculta. Então, fechais os olhos ante a ardência causada pela água e os mantivestes cerrados com firmeza. Um sentimento de descontrole vos abate, como se, após a morte, houvéreis perdido a capacidade inata de nadar. Ignoráveis onde estavas ou o que acontecia, mas mesmo submerso, vós podias sentir que Virgílio permanecia próximo. Sua presença oferecia conforto e segurança.
Prendíeis a respiração, mas então recordastes que, na condição atual, não havia necessidade de respirar. Sentistes o gélido líquido - se é que aquilo era água - penetrar vosso nariz e deslizar por vossa garganta, inundando vossos pulmões sem causar dano físico ou espiritual.
Subitamente, um pensamento vos invade, trazendo a sensação de que detínheis todo o conhecimento. O oceano do barqueiro fluía dentro de vós, preenchendo o universo inteiro, do Ovo à Rosa. Vós sabíeis. Conhecíeis o que era o Ovo - o local onde o universo se iniciou, ao som de vozes incriadas entoando no vácuo - e sabíeis onde jazia a Rosa - a peculiar dobra de espaço, em dimensões como origami, florescendo como orquídeas estranhas, marcando a última época auspiciosa antes do subsequente fim de tudo e do próximo Big Bang, que agora, em vossa sabedoria, compreendíeis estar distante. Nenhuma profecia do fim do mundo estava próxima. Não agora... Não naquele lugar...

Tudo sussurrava dentro de vós. Tudo falava para tudo, e vós conhecíeis tudo. Com olhos curiosos, abristes-os, ansiosos por descobrir se o mundo exterior assemelhar-se-ia ao universo interior que vos envolvia. Pairáveis nas profundezas do lago. Olhando para baixo, o mundo azul perdia-se de vista na penumbra abissal. Elevando o olhar, o cenário acima também se esvaía no vazio. Nada vos puxava mais para o fundo, nem vos impelia em direção à superfície.
Ao girar a cabeça, sutilmente, em busca do barqueiro, percebestes que ele estava ali, próximo, sem jamais vos abandonar. Havia algo inefavelmente especial em Virgílio, cuja essência ainda não compreendíeis. Ele parecia mais grandioso e crucial do que admitira ser. Será que ele era o verdadeiro Caronte, disfarçado de um mero barqueiro a serviço da hierarquia? Tal ideia, outrora impensável, parecia-vos agora plausível, e tínheis a certeza de que, um dia, desvelaríeis a verdade.
Virgílio transmutara-se, aparentando ser feito de lençóis de seda gélidos, repletos de pequenas chamas de velas titilantes, uma miríade de luzes cintilantes que expurgavam todas as criaturas abissais com sua resplandecente presença. Ele era a própria transcendência que todo espírito insone busca, ainda que envolto em mistérios e indagações, confiavas naquele enigmático guia e aguardavas os desígnios do futuro que se revelariam em breve.
Naquele instante, uma certeza inabalável vos invadiu: enquanto estivésseis no lago (ou oceano) de Virgílio, haveria esperança, até mesmo no mais profundo abismo infernal. Assim, adentrastes ainda mais nas águas enigmáticas, alçando-vos à onisciência. Compreendíeis todos os conceitos de tempo e espaço, bem como a natureza da Matéria Escura e da substância oculta do universo, que permeia tudo o que existe, mas permanece invisível aos olhos mortais. O tecido espaço-temporal tridimensional revelava-se a vós como um mero lençol diáfano.
Ali, as intrincadas engrenagens do tear do Dharma desvelaram-se diante de vossa visão. Concebíeis um oceano fluindo sob o universo inteiro, como as águas sombrias do mar ondulando sob as tábuas envelhecidas de um antigo píer: um oceano que se estendia do infinito a outro e, ainda assim, era compacto o suficiente para repousar dentro de um lago.
Descendo ainda mais nas profundezas, vislumbrastes inúmeras engrenagens, polias, roldanas e mecanismos que permeavam o mundo dos efêmeros, ocultando-lhes a terrível e maravilhosa verdade, cuja compreensão poderia conduzir às raias da loucura. Nessa revelação, percebestes que tudo e todos habitam a mesma morada cósmica, e que não passamos de divindades brincando conosco mesmas, tal como um pai brinca com um filho em um jogo de esconde-esconde e
roleplay (faz de conta). Ali, o temível não era tão temível, e o inescrutável tornava-se um lúdico exercício infantil. Ser conhecedor de tudo e possuir todo o poder, era, enfim, a perfeição incontestável...
Caronte ostentava uma forma etérea, moldada em seda alva e chamas de velas tremulantes. Então, inquiristes a ti mesmo qual seria a vossa aparência aos olhos dele naquele reino ignoto, mas, ainda que estivesses imerso em um domínio que exalava puro conhecimento, compreendias que essa era a única incógnita que jamais desvendaríeis. Foi então que um evento inominável se desenrolou... Com um olhar afável e amoroso, Virgílio, sem proferir sequer uma palavra, transmitiu um pedido mudo: "Perdoa-me"...
Intrigado, questionavas... Perdão por quê? Qual a razão para tal súplica? Então, a epifania vos atingiu... Se contemplásseis o próprio íntimo, enxergaríeis apenas espelhos infinitos, refletindo o vosso ser pela eternidade. As correntes oceânicas agitavam vossos cabelos e trajes como suaves brisas estivais. Já não sentíeis frio, fome ou desconhecimento, pois o vasto e intrincado mundo se revelava simples, compreensível e fácil de decifrar. Ali permaneceríeis até o fim dos tempos, imerso em um oceano que abarcava o universo, a alma e tudo o que realmente importava. Pensavas consigo mesmo: "Ficaria aqui para sempre..."
Então, a voz do barqueiro sussurrou em vossa essência:
— Não podes. — Ele te aniquilaria.
— Não matar. Aniquilar. Dissolver. Não encontraríeis a morte aqui, pois nada jamais perece neste lugar; contudo, se permanecesses por tempo demasiado, fragmentos teus se dispersariam por toda a parte, diluídos no infinito. E isso, em verdade, não é algo auspicioso. Jamais haveria o suficiente de ti reunido em um único ponto, de modo que nada restaria que pudesse conceber-se como um "eu". Nenhum ponto de vista, pois te tornaríeis uma série infinita de perspectivas e ângulos...
— É por isso que imploro teu perdão...
— Perdão por ter de arrancar-te do oceano do Espírito. Será uma dor lancinante... Eu mesmo enfrento-a cotidianamente, e ainda não me habituei. Apenas nós, os barqueiros, podemos transpô-lo.
Pretendias replicar, pois ele tinha de estar equivocado: amavas aquele lugar, aquele estado, aquela sensação, e jamais vós o deixaríeis. No entanto, Virgílio te arrancou... Tua cabeça emergiu das águas, e, ofegante, piscaste e tossiste. À medida que a "água" escorria, evaporava e secava, o conhecimento outrora absoluto e simplório adquirido no lago esvanecia-se, até que tudo se transformasse em uma lembrança distante e um retrato desbotado em tons de sépia. Então perdes a consciência, em um sono, tranquilo e calmo, como um bebê, no colo de sua mamãe.
***
Uma vez recomposto, apercebes-te de que te encontras no compartimento de um trem enigmático. Tudo jaz envolto em trevas e silêncio sepulcral. As cortinas das janelas, cerradas e impenetráveis, ocultam o mundo exterior. A temperatura, agradavelmente amena, envolve-te em um abraço reconfortante. Todos os demais passageiros, também presentes no recinto, encontram-se imersos em um sono profundo, porém, aos poucos, começam a emergir do torpor. Tua mente ainda está permeada por uma névoa misteriosa, mas sentes-te revigorado e pleno. Que ações teus passos hão de seguir?
Contemplas o ambiente à tua volta, tentando decifrar os segredos ocultos que o trem parece guardar. O lento e cadenciado balançar dos vagões desperta em ti uma curiosidade inquietante, impelindo-te a explorar as entranhas desta locomotiva enigmática. Buscas então levantar-te com sutileza, de modo a não perturbar os companheiros de viagem que ainda se encontram em pleno repouso. A atmosfera opressiva e o silêncio, apenas interrompido pelo ranger das rodas sobre os trilhos, inflamam tua imaginação com vislumbres de histórias não contadas e destinos desconhecidos.
O que vais fazer?