Chloe acorda com o rosto explodindo em dor. O som de um sino enorme na cabeça dela.
"Você vem com as próprias pernas. Fugiu com elas e volta com elas." O zumbido ainda não tinha parado. Ela sente o outro a segurando pelo cabelo e empurrando de frente pro espelho.
"Não tira isso. Não grita. Não faça nenhuma besteira e esse pode ser o último tapa que eu te dou." Ele estava atrás de Chloe e era grande demais. Selvageria contida por tão pouco. As roupas finas um disfarce pequeno demais. Ela ainda não sentia as pernas, elas tremiam. Chloe se viu choramingando no espelho. O medo nos olhos. Nas linhas do rosto. Ela tentou esconder. A raiva não deu força o bastante para desafiar o medo, mas ao menos para cumprir a ordem. Ela estava com um echarpe enrolado na cabeça e a peça vermelha combinava com ela e com os oculos colocados no seu rosto enquanto ela olhava. Suas mãos estavam presas uma na outra, mas as mangas longas escondiam as fitas de plastico duro que prendiam os pulsos.
Ele a empurra pelo corredor enquanto ronrona uma música. Ela fica irritada por reconhecer. Frank Sinatra, My Way. Era irônico. Quando eles saem ele tem a delicadeza de trancar a porta com a chave dela que guarda em seu próprio bolso. Ele a pega pelo braço como se fossem um casal. Em algum momento até ali ele diminuiu e voltou ao tamanho normal. Garras e presas tinham desaparecido. Mesmo assim era forte e ela sabia que aquela aparencia polida era uma casca fina.
Um carro estava parado com o motor ligado na frente da casa. Um homem sai de dentro dele.
"Demorou demais." Com ar frio de autoridade. Ele abre a porta pela qual Chloe é empurrada para dentro do carro. Qualquer resistência abafada com dor e medo. O homem estranho volta para o volante e o outro se senta ao seu lado no banco de trás. Qualquer ilusão de plano de fuga se desfaz. Nenhum dos dois fala com ela depois disso. Conversam entre si como se ela não existisse e isso é uma benção. Uma benção pequena.

Os detalhes são um pouco confusos nessa parte porque o homem que estava com ela cobre seus com a mão grande. Ele não se importa nem um pouco com o desconforto dela e quase esmaga sua cabeça quando ela resiste ao abuso.
"Vou arrancar os seus olhos se continuar não parar com essa porcaria." Ele não parecia estar mentindo.
Quando a permitem ver de novo o carro já tinha parado e sua dor não estava menor. Ela vê grama a sua volta. Uma casa grande e rural. Ouve um barulho distante de animais inquietos. Ali toda pretenção de civilidade é abandonada. Mesmo assim ela não é carregada, é forçada a dar cada um dos passos que a levam até o seu novo lugar. Ela vê outros homens ali. Não só homens, mulheres também.

O velho chega perto deles e fala com os homens na língua que Chloe não entende. O motorista arranca o echarpe de Chloe. O velho não mostra qualquer compaixão em seu rosto, porém sua voz é carregada de desapontamento.
"Vai ficar bem Chloe. Seu pai está quase chegando com o Byrne. Logo vai estar em casa e vai poder descansar." Ele não espera uma resposta, é como se Chloe tivesse se tornado invisível assim que sua boca se fechou. Como se nunca tivesse estado ali. O homem que a pegou em casa aponta o estabulo grande e alto e a ruiva sabe o que fazer. Sabe que tem que andar. Sabe que tem que colocar um pé na frente do outro e que cair vai doer, deitar vai doer e lutar pode ser a morte.
Os animais de novo, um som desagradável e inquietante. Um homem enorme e forte como um trator está lutando com uma mulher esguia. Ambos com armas cortantes, mas ele a mantém na defensiva o tempo todo e mesmo sendo enorme ela parece cançada e ele fresco como a primavera. Pessoas ao redor riem quando ele finalmente acerta ela. O grito agudo de dor. O sangue espalhado no ar da noite vertendo um vapor que ela conseguia ver de longe. A mulher no chão larga a arma e desiste. Ela tinha um corte longo no abdomen e estava empurrando algo de volta para dentro.
Chloe quase bate de cara na porta do estábulo. A porta entreaberta é empurrada cavalheirescamente para ela. Mas ela é empurrada brutalmente para dentro. Ela imaginou que o horror que vinha sentindo não podia ficar pior e mesmo assim estava com o estômago embrulhado com o que viu lá fora. Ainda ouvia a mulher gritar. Mas os animais que via ali dentro eram algo ainda pior. Não eram animais. Ela sente pânico agarrando seus ossos, um medo instintivo sequestra suas pernas e ela tenta correr. Dessa vez ela sabia o que aconteceria antes de acontecer e mesmo assim a dor foi uma surpresa. As tabuas batendo nas suas costas também. Ela nem sentia as lágrimas correrem.
"Sabia que não ia me decepcionar." Ele arrasta Chloe pela borda de madeira e está prestes a enfiá-la dentro de uma baia.
"Não. A cadeira é para ela."Não era uma cadeira. Era uma poltrona. Macia e confortável. Ao lado uma caneca fina de metal tinha um pouco de bebida. Ele coloca Chloe lá a contra gosto e o motorista solta seus pulsos com as mãos antes de sair. O outro se recosta na parede de madeira que range e assiste Chloe como que esperando a hora em que o filme ia ficar interessante de novo. Como quem sabe que o final tem uma surpresa difertida e só está esperando chegar lá.
Porém Chloe não consegue parar de olhar para as pessoas nas baias. As pernas presas por correntes. As mãos presas em sacos de couro. Homens e mulheres comendo com as caras enfiadas em no mesmo lugar onde um animal tinha comido. Alguns choramingavam e outros se encolhiam nos cantos. Água em um bebedouro de cachorro. Eles não tinham roupas, vestiam a própria sugeira.
"Você tem sorte, vai de volta pra mansão." As pessoas olhavam para ela sem nenhuma palavra e Chloe sentia medo delas também. Daqueles olhares desesperados. Olhos cheios de inveja. Cheios de dor e medo. Uma mulher estava amarrada a um suporte estranho, algo usado para animas e grande demais para a pobrezinha. Chloe conseguia ver ela tremendo, o cabelo molhado, mais limpa que os outros. Semem escorrendo pela perna. Rosto escondido e apontado para o chão. Ela nem chorava, só tremia e gemia de dor. O corpo exposto e empinado para ser montado a força. Talvez ainda fosse ser visitada de novo, talvez a tivessem esquecido ali depois do uso. Quem sabe era uma punição.
Olhando as pessoas nas baias ela não tinha certeza se era, na verdade, uma recompensa.
--
"Devon." A voz chama alto lá fora. Ele se afasta sem nenhum medo de que Chloe fuja. Quando o homem sai a porta quase se fecha sozinha. Quase. Chloe vê os farois se apróximando. Vê o mato alto depois da cerca do outro lado e o resto é escuro demais para ver. Por algum motivo usavam fogo para iluminar. Ela ouve algo forçando a porta dos fundos. Ela sente esperança e logo depois mais medo. Raiva de si mesma por ser tão inocente. O barulho para e não volta. Mas passos entram por onde o outro homem saiu. Outro homem indo direto para a mulher no suporte.
"Não vim machucar você." Ele parece estar falando com a mulher, mas olha para Chloe.
"Só estou de passagem." Ele coloca um balde com água e sabão, um pano umido e branco na alça. Um cobertor dobrado logo ao lado.
"Não precisa ter medo de mim. Eu não minto, não posso ajudar vocês." As pessoas nas baias fazem mais barulho que o normal. Chloe só percebe agora que nenhum deles disse uma palavra. As bocas abertas grunhindo. O homem olha para eles com dor em cada linha do rosto, mas ao invés de agir ele volta por onde entrou.
Chloe vê agora, sem as lágrimas nos olhos acostumados com a iluminação precaria de uma só lamparina. As pessoas nas baias tem as línguas pregadas no fundo da boca. As pontas afiadas aparecendo no queijo. Cascas de feridas e inflamções misturadas com ferrugem.