Uma Antessala Vermelha - Letícia

A resposta viera em olhos que sorriam no espelho interno do carro. "Da próxima melhor a gente botar a polícia pra fugir".

Sem demorar, o carro seguia por vias aparentemente aleatórias, mas que logo conduziram a cenários conhecidos pelas meninas. Estavam quase na zona da praia.
- Aliás, da próxima vez que assaltarem um banco, contem comigo. - Brincou, passando os olhos pela região rica da cidade.

Quando finalmente parou, acrescentou ao ar frio da noite algumas palavras aparentemente sem intenção, quase como uma estranha conversa de elevador. "Cuidado com quem mora alto demais. Eles tiram o sangue das pessoas comuns". A fala combinava bastante com o estilo outsider dela.

Pela forma como estava lidando com a situação, não parecia de forma alguma ser a primeira vez que aquela inusitada motorista performara uma "fuga espetacular" da polícia. Parecia mesmo apreciar a agitação, curtindo a quebra, mesmo que violenta, da normalidade.
Mas não pôde deixar de apontar algum nível de preocupação:
- Infelizmente, tão tentando “higienizar” a gente. Não é a primeira vez que a polícia chega assim nalguma festa libertária bastante pacífica e... . “Política de estado”.

O que Santa Dômina não conseguia absorver e capitalizar, suprimia na força.

Quando as passageiras haviam descido daquele carro de procedência desconhecida, preparava-se para seguir o próprio rumo, mas Letícia tomara a iniciativa de manter o contato:
- Claro. Conheço alguns points bem interessantes - havia uma pitada de desafio na entonação dela. Era de se esperar, no mínimo, encontrarem-se surfando em meio a tubarões.

Sem mais tardar, sumira na noite, deixando para trás o estranho silêncio do pós-furacão.

Tarde abafada de sábado.
A semana correra tão intensa quanto alguém zapeando por infinitos canais a cabo, deixando à mente apenas flashes desconexos, vestígios de diferentes programações: uma risada aqui, um susto ali, um prato colorido, selvageria, romance.

A troca de informações com a produção as deixara com um conjunto simples e objetivo de diretrizes, resumidas às duas comparecerem pontualmente às 19h no endereço combinado, uma área hiper chique e reservada de Santa Dômina, daquelas que não se bate por acaso e que qualquer pesquisa de imagens mostraria como ocupada apenas por casarões mili ou bilionários. Às 22h estariam iniciando a rápida apresentação com uma delas ao piano, fazendo backing vocals opcionais, e a outra cantando.
Qual seria qual ficaria à cargo das garotas decidirem.

Afora a necessidade de trajes formais, Marcela havia se assustado com os valores, sendo 4 mil pela apresentação, dividido como elas quisessem. Isso por apenas duas músicas – na verdade uma a mais do que inicialmente sugerido.



A segunda canção não parecia particularmente difícil, um desafio mais que compensado pelo dinheiro envolvido, ainda mais considerando que não precisariam se preocupar com levar os instrumentos. Marcela inclusive sugerira a Letícia, em tom de brincadeira, que agora deveriam pedir o dobro.

A companheira passara os últimos dias algo surtada, falando repetidamente sobre o assunto, e estava agora indo para a casa de uma conhecida, onde pegaria o figurino dela.

Letícia estava em casa.

Não sabiam discernir os motivos por trás do fato de não terem sido informadas exatamente qual o tipo de apresentação estaria se desenrolando enquanto tocavam de fundo. Seria parte do mistério de Radiance ou simplesmente a produção achando que não era da conta delas, “meros” acompanhamentos. Marcela teria obviamente preferido saber mais sobre tal ponto.
- E se alguém vier sem roupa subindo no piano? Deus me livre... mas quem me dera.

Mais tarde, voltara ao assunto: “Olha, eu vou muito bem preparada pro caso de começarem a tirar a roupa. Esse hidratante corporal com micropartículas luminosas com efeito 24h foi supercaro, mas já está na conta do nosso pagamento”.

Brincara sobre serem descobertas por alguma agência e já saírem de lá com um contrato para a gravação de um álbum conceitual ou coisa do tipo. Ansiosa como estava, tinha passado a semana grudada ao celular, temendo alguma mudança súbita de planos que cancelasse a apresentação, mas naquele momento em específico não havia sequer visualizado a mensagem de Letícia. Devia estar ocupada arrumando-se.

O trânsito daquela maldita cidade já começava a dar sinais de engasgo, tentando atravessar mais do que a própria garganta aguentava: carros além do suportado pelas ruas, menos ônibus do que a população precisaria, metrô mais caro do que os bolsos do "populacho" suportava.

A culpa daquilo, em grande parte, era da falta de planejamento urbano, instituições públicas e privadas apenas preocupadas em somar e somar, sem se preocupar com a impossibilidade física de circular. Formigueiros altíssimos, uma vez desovando, inundavam tudo com uma onda humana deveras irritadiça, estressada após o dia de trabalho.

As áreas ricas, como a zona Leste, além de permitirem aos ricos residirem mais próximos dos centros financeiros, eram famosas por pubs nos quais executivos curtiam a "hora feliz" esperando a enxurrada diminuir, ou pelos restaurantes chiques em que essa mesma gente decidia jantar para gerir melhor o tempo.
Ao resto, o engarrafamento: pessoas ansiando pegar o próximo transporte, às vezes o primeiro de muitos, para chegar em casa e reencontrar a família o mais cedo possível. Na direção da periferia, não só os coletivos eram mais precários, mas o próprio asfalto não ajudava. Tal fluxo era sempre o pior.

Isso tudo sem contar algum acidente ou briga de trânsito.

Àquela altura, Marcela respondera a mensagem: “amiga, vou direto pra festa. Tá horrível de chegar aí”.

A zona Leste da cidade, fato bem sabido, encontrava-se levemente separada – nalguns pontos por poucos metros – das outras áreas por conta da presença de dois cursos d'água, os rios de Abril e das Pedras. Tendo a outra face banhada pelo mar, era, tecnicamente, uma ilha.
A ilha do Mirante, ligada ao continente por inúmeras pontes.

O tal "mirante" em si era um pátio que se derramava ao redor de uma enorme esfinge náutica, posta no precipício de um morro de mesmo nome, coberto de mata quase totalmente virgem. Num ambiente urbano como aquele, tal santuário era mantido através de muita luta e regulamentação ambiental – o que significava que só os muito ricos podiam violar tal status.

A figura em si, reprodução da imagem de proa do navio colonizador batizado em homenagem a Santa Dômina, nobre que financiara a primeira expedição à região, era uma mistura de anjo e sereia numa expressão de olhos ao mesmo tempo belos e assustadores. Uma poeta já a havia descrito à semelhança de encarar um relâmpago de frente: só quem teve tal experiência poderia narrar. Se não tivesse morrido.
Uma bela metáfora para o que era ser cidadã ou cidadão daquele pedaço de mundo.

Além do pé da estátua e do caminho até ele, a floresta preservada só cedia espaço para as mansões bilionárias que se agarravam como aranhas à superfície do monte. O caminho até as casas era tortuoso e bem cuidado, mas só pisava nele quem ultrapassasse a portaria inicial de seguranças gentis, mas fortemente armados.

O carro levando Letícia subiu lentamente a inclinação, confiando na precisão do GPS para vencer um pequeno labirinto, uma vez que não havia ninguém na rua após a entrada principal a quem se pudesse perguntar. Após alguns momentos vacilantes, quando finalmente atingiram o ponto marcado, já era escuro.
- Não sabia nem que isso existia – comentou o motorista boquiaberto com as fachadas pelas quais passaram. Eram endereços isolados e reservados, como se quem vivesse ali não quisesse passar pelo incômodo de ter vizinhos.

O homem deteve o carro atingindo o final da viagem, uma portaria elegante, porém surpreendentemente rústica. Era como se pretendessem não perturbar a harmonia daquele espaço verde. Uma espécie de mordomo aguardava na porta, sendo aquela presença anteriormente anunciada pela segurança da cancela principal.

Como o faria um autêntico guarda real britânico, o suposto mordomo apenas permaneceu quieto, tão sem vida e imóvel quando a grande pedra, a montanha sobre a qual tudo aquilo se assentava.

De forma um tanto quanto sinistra, intencionalmente ou não, uma silhueta emergiu das sombras e... não, era apenas alguém fantasiado de preto dos pés à cabeça, quase passando desapercebido, camuflado numa área de meia luz.
- Por aqui – A voz do guia era aveludada, mas um tanto quanto abafada, rosto coberto como estava.




Seguindo na frente com passos firmes, conduziu Letícia por alguns lances de escada, cercada do cheiro forte de mata molhada. A entrada em si era uma pequena rampa sobre um espelho feito de água.




O interior da casa era voltado não para a direção da rua, abrindo-se para o espaço além. Havia até um pequeno córrego como vista, um luxo muito diferente de joias e ouro.

O ambiente e a decoração, inusitadamente, não era o tipo comum de ostentação, chegando a haver algo de rústico na forma como a mão humana e a natureza pareciam conviver simbioticamente. É claro que, num mundo daqueles, mesmo a aparente simplicidade austera de uma garrafa de água podia esconder a fortuna de uma bebida vinda de fontes vulcânicas etc. Era de se duvidar que qualquer coisa “comum” que estivesse ali não tivesse sido trazida especificamente por uma equipe especializada de arquitetura e design, estudo para parecer espontâneo.




A construção em si, descontando-se a área da piscina e o espaço aberto ao redor, não era tão grande assim – ao menos em comparação ao que se imaginaria por uma mansão. De qualquer forma, era mais maravilhosamente amplo que a maioria dos apartamentos.
- Este é o primeiro andar - acrescentou o condutor, revelando que o ambiente, apesar de aconchegante, era o dobro do que se poderia captar na primeira impressão – e o piano foi colocado no gramado após a piscina. Caso precise se aprontar no camarim, pode aprontar-se no aposento de hóspedes abaixo dele - completou, apontando para a área em frente.

Havia muitas surpresas ali. Não era bom confiar nas aparências.

Para decepção da jovem, não havia a presença confortante da amiga naquele ambiente pouco familiar.

Curiosamente, enquanto escrevia uma mensagem para Marcela, o sino do aplicativo denunciara o recebimento de uma mensagem da mesma. No fundo, não era estranho que uma estivesse pensando na outra, já que ambas estavam se dirigindo para o mesmo compromisso.
“To tentando chegar amiga”, dizia o bilhete estranhamente datado de mais cedo. Talvez o sinal não fosse dos melhores naquela mata urbana, de modo que a mensagem não chegara a Letícia imediatamente. “vc n sabe quem falou cmg agora”.

O celular voltara a se manifestar, mas agora a origem era outra. “ONDE VOCÊ ESTÁ?”. Coincidentemente, a mensagem era justamente de alguém que ajudara a marcar a fatídica noite que a pusera naquela mansão.
Na indicação do contato, a imagem do perfil era facilmente reconhecível.

Tal qual antes, o horário do envio era de cerca de meia-hora antes, só chegando ao destino agora.

O tempo corria rápido no relógio da ansiedade, de modo que a hora da apresentação não estava muito longe agora. Não só Marcela não havia chegado - demora estranha -, como silenciara-se no celular.
As últimas mensagens enviadas por Letícia não pareciam ter sido entregues - por conta da localização, o sinal do celular talvez chegasse e partisse randomicamente, não estando disponível justo naquele momento.

O interior daquela "quartinho de hospedes" era de um padrão bem acima da média da maioria das casas que uma pessoa comum veria na vida, ainda mais em se tratando do alto contraste entre pobres e riquíssimos naquela cidade. Tudo estava muito limpo, apesar de uma certa aura, uma brisa de natureza que cortava o local - a noite começara a esfriar um pouco.




Um dos curiosos empregados fantasiados desceu as escadas trazendo uma bandeja com frutas e bebidas. Atrás dele, uma figura de roupas bastante chamativas, como se saída dum desfile de moda conceitual, cuja voz poderia ser reconhecida como a pessoa que vinha tratando com as garotas pelo telefone. Trazia o contrato da apresentação e uma desculpa:
- Boa noite. Camille Davila, uma das produtoras de Radiance. Infelizmente, a necessidade de concentrar-se para a apresentação não permitirá que nossa estrela venha falar com vocês antes do evento. Transmito as desculpas enviadas - Ao contrário do calor e gentileza de Radiance, Camille era bastante fria e formal, apesar de toda a educação e profissionalismo - Espero que esteja tudo nos conformes para a participação musical.




Depositando as provisões e o papel numa das mesas, terminou com uma informação alarmante:
- Em dentro de meia hora as atividades começarão.

- Talvez você precise do pianista?!?! – repetiu a mulher numa expressão algo incrédula, definitivamente não contente. Olhou ao redor, sem saber o que realmente procurava. Talvez esperasse ver uma solução sobre uma estante, ao lado do criado mudo... – O que quer dizer com isso? Não temos tempo para arranjar um pianista a essa altura. Se não houver apresentação... a decepção seria muito, muito grande para Radiance. As pessoas... as pessoas já aguardando.

Como se não bastasse aquela situação delicada, como se já não fosse suficiente ter que arranjar algo a dizer para a mulher que aguardava por respostas, o celular começou a tremer loucamente.
Eram várias mensagens e notificações de chamadas perdidas chegando de uma vez só. Não só aquela subida chuva de informação acumulada poderia ser difícil de ordenar, mas o conteúdo dos textos era... .

De Ricardo, havia recados como “Amor, você falou com a Marcela?”, “Letícia, eu e a Marcela estamos tentando ligar pra você. Atende” e “Assim que estiver desocupada e ver, retorna. É urgente”. De Marcela, a verdadeira derrocada: “Amiga ESTÁ TUDO BEM COMIGO OK? NÃO É NADA GRAVE porém estou no hospital bateram no nosso carro e eu vou ter que levar ponto”. “Amiga eu não sei o que dizer o que fazer não vai ter como eu chegar aí na hora”.

A coisa continuava, com a parceira lamentando (“Pq logo hoje? Eu vou te deixar na mão”) até brincando (“Vai e arrasa n perde esses 4mil a grana p vc pagar minha prótese q vou aproveitar q toh aqui pra diminuir os seios e mudar o nariz”), apenas para se desculpar em seguida (“Amiga desculpa n eh o momento pra piada vc deve estar com muita raiva de mim por t deixar sozinha”).

Em meio àquilo tudo, algumas mensagens completamente sem sentido da garota curiosa da noite de antes: “SAIA AGORA”, “ESSA GENTE É PERIGOSA”, “NÃO FIQUE AÍ NEM MAIS UM MINUTO”. Era difícil saber do que ela falava. Estaria drogada? Havia surtado nalguma teoria de conspiração? Sabia de algo sobre aquela noite?

Um fato talvez tivesse passado desapercebido até o momento: na festa do “F1”, a mulher parecia ir na direção de Letícia e Marcela após o fim da apresentação, mas despareceu, só retornando quando Radiance se afastara das duas. Coincidência?

Camille aguardava, esperando a posição da cantora especialmente convidada para aquele momento e às custas da demissão da outra pessoa responsável.