por Lnrd Ter Jun 11, 2019 11:24 am
Dentre as estranhas – ou mesmo insanas – passagens daquela noite, aquela figurava certamente no rol das mais memoráveis e confusas: o ferimento que fazia pouco ameaçava a vida de Letícia agora era não mais que uma mancha suja de sangue coagulado e um rasgão nas roupas que ela havia escolhido especialmente para o que quase – ou efetivamente – transformara-se no próprio velório.
Menos grave, mas ainda assim notável, era que o mesmo ocorria nos lugares em que aquelas bocas haviam tocado-lhe a pele para... era difícil precisar o que haviam feito a ela. O que importava é que estava “regenerada”.
Ou quase, à medida que estava morta.
Mal tivera, porém, o tempo de processar e entender o que acontecia. A próxima coisa que cruzara-lhe o olhar ao despertar foi a face feroz de Jezabel fechando o punho sobre uma espécie de ampola, fazendo vazar um espesso vinho que escorria-lhe por entre os dedos até o braço. Com aquele gesto, pronunciou uma palavra que atingira a cantora como uma bigorna, sacudindo-lhe a consciência, precipitando-a para um abismo.
Inicialmente poderia ter reconhecido aquela sonoridade como algo próximo a “esqueça”, mas essa certeza parecia estranhamente tentar fugir-lhe a mente, levando consigo a maior parte dos acontecimentos daquela noite – eram ondas que, indo e voltando, tentavam varrer o castelo do que quer que tivesse ocorrido ali, apesar das irreparáveis marcas no corpo e psique de Letícia.
- Esses Tremere nem clã são, mas ao menos servem pra alguma coisa... .
Alguns instantes depois, tudo parecia diferente, novo, renovado. Um computador reiniciado, porém ainda lento enquanto os programas são carregados.
- Está tudo bem? – Interviu Radiance consternada. Nada ali denunciava o ataque prévio.
- Querida, você passou mal durante a encenação – acrescentou Jezabel, agora num rosto delicado e atencioso, máscara disfarçando uma sínica mentira – Foi quando o sangue falso espirrou na sua roupa. Você lembra? – era óbvio que não, mas não deixaria trair-se por uma atuação fraca – Será que você não está grávida?
Seria impossível à moça sentir a própria respiração ou o coração, peça aparentemente inútil dentro da caixa do peito, mas “respiro? Meu coração bate?” não são questões que as pessoas comumente fazem ou se atentam – ao menos não enquanto estivessem confusas e preocupadas o suficiente.
- Temos que arranjar roupas limpas pra você, um motorista pra te deixar em casa e... ah, acho que seu celular não sobreviveu à queda – A carrasca era agora um doce, afável como uma freira.
Da apresentação às chicotadas, do tiro ao ataque, tudo deveria parecer nebuloso ou mesmo não existir na mente daquela vítima. Principalmente, era improvável que guardasse a sugestão de que deveriam transformá-la, manda-la para casa e assassiná-la no dia seguinte.